PINTURA - ANOS 1960

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    Pintura, 1965
    Revista Acrópole, número 324, dezembro

    Acervo Flávio Império

    © Sérgio Ferro

    Pintura

    Picasso <... a pintura... é um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo. >

    O nosso inimigo é conhecido: são as forças e as ideologias freadoras do processo de libertação. Hoje, assustado com os tímidos avanços dos últimos trinta anos, ele se organiza e equipa meticulosamente, para impedir novos ensaios.

    A pintura - configuração espacial das ressonâncias essenciais das transformações e resistências da sociedade - procura rapidamente, os instrumentos adequados ao agravamento das condições do país e de suas vinculações, para melhor servir como conscientizadora social, como arma, portanto. Racionaliza e dirige, até os limites do possível os elementos da linguagem para enfrentar o mecanismo da penetração cultural, fornecedorde um pensamento distantede nossas necessidades; para traduzir, eficazmente, a violência das direções que nos foram impostas e para proteger os níveis de atuação e vida caracteristicamente humanos ainda possíveis.

    A plástica "de importação"e a local são analisadas, depuradas de seus compromissos de origem ou tradição e incorporadas ao nosso arsenal. Parte delas, a que aponta problemas semelhantes lá e aqui ou ontem e hoje, permance intocada, o resto é reelaborado. É o que acontece, por exemplo, com o informalismo e a pop-art. 

    O informalismo surgiu para evidenciar o mal-estar, a alienação e o desencanto generalizados que atingiram Ocidente. Opera através de dupla reação: afastamento do mundo caótico (em linguagem plástica, eliminação do espaço em profundidade) e descontrolada manifestação de atividade subjetiva para compensar a reificação crescente (em linguagem plástica, a matéria, o empaste, a grafia solta e fragmentada). Mas, não prossegue além do contraste denunciador, compactuando, inconscientemente, com as reais causas dessas contradições pelo exagero que os absolutiza e torna intransponíveis. 

    pop-art  atualizou inúmeras possibilidades de linguagem. O uso de fatias de realidade (os objetos, as colagens, as foto-montagens que apresentam, com descarada nudez, o próprio acontecimento ou sua reputação mecânica, espécie de "naturalismo"exaltado) permitiu maior acuidade crítica e alargou o vocabulário plástico ao introduzir a ambiguidade de um fato que é símbolo e, ainda, forma significativa. O aparelhamento necessário para uma arte mais aderente e inclusiva fora elaborado: a pop-art respeitou, entretanto, seus compromissos com os que a promovem e se recusou articular, numa estrutura esclarecedora, as dispersas visões de uma realidade sombria e ridícula, perdendo-se em ironias ou pesadelos superficiais. 

    A pintura nova se apropria dos progressos que estas e outras tendências (a nova figuração, o realismo fantástico, o neo-dadaísmo e todos mais em que a crítica oficial subdivide o movimento único, embora complexo, de hostilidade em relação as atuais condições de existência) efetuaram, aclarando, porém, a confusa trama dos movimentos concretos pela elaboração de um espaço capaz de refletir as aparências e descobrir os fundamentos e as razões que as geraram.  Emprega os novos elementos com a consciência dos seus significados e implicações. 

    A desespacialização, assim, já não persegue a permanência de vagos e inconsistentes valores, como em Tapiès: quando é utilizada, em todo ou em parte do campo pictórico, é para salientar a estaticidade morta de formulações e instituições ultrapassadas. A demonstração incontida de frustração da existência ativa interior, esgotada e satisfeita na mera exibição num Fautrier, é entendida, agora como motivação de tendências vivas e modificadoras, ganhando em sentido o que perde em exacerbação. A imagem-símbolo da pop-art, gratuita e indiferente em Rauchemberg ou Jasper Johns é orientada, intencionada e disposta hierarquicamente no espaço. A multiplicidade das significações que carrega, compreendida e empregada criticamente em todas as suas dimensões. 

    O resultado deste procedimento, complementado pela intervenção de formulações diretas e intuitivas, não pretende criar a ilusão de uma unidade simples. A justaposição de recursos descontínuos, a presença simultânea de reflexo, reação, julgamento e proposta impedem harmonias ambientais ou significações sintéticas. A pintura se torna fundamentalmente aberta, como forma e pensamento. Envolve, em todos os níveis, a participação criadora do espectador. Amarrada ao tempo presente, evita o fechamento, a auto-suficiência e as configurações definitivas, inclui opacidades e incertezas mas aceita a responsabilidade da posição. 

    SÉRGIO FERRO

    PINTURA - ANOS 1960