DEPOIMENTO DE FLÁVIO IMPÉRIO A RADIO CULTURA
(1983)

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Depoimento de Flávio Império a Dorival Carper
por ocasião da Exposição Retrospectiva Rever Espaços - o espaço cênico segundo Flávio Império
Panorama da Radio-Televisão Cultura
Fundação Padre Anchieta, 25 de julho de 1983
Editado por Maria Thereza Vargas
São Paulo, 2012

© Flávio Império

Tenho a impressão que esta exposição Rever Espaços, com meus trabalhos é a maior já feita na Pinacoteca do Centro Cultural São Paulo. Já organizaram outras, menores. Me lembro de uma exposição montada pelo Departamento de Informação e Documentação Artísticas-IDART ainda na Casa das Retortas, muito interessante com telões pintados, fotos e vestuário. Foi uma coisa muito bonita. Houve uma outra, também com material fotográfico do Arquivo Multimeios, do Idart, feita pelo José Armando Ferrara e o Canal 2, sobre o Teatro Brasileiro de Comedia -TBC. Mas uma dedicada a um único cenógrafo, acho que é a maior feita pela organização. A idéia foi de Renina Katz, atual responsável pela Pinacoteca . Trabalho com ela há muito tempo e ela foi minha professora e eu depois fui seu assistente, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Ela me perguntou se com o material que havia no Centro de Documentação, daria para fazer uma exposição. Disse que sim, mas que não queria assumir a responsabilidade da coisa. (Renina, aliás, tem vários projetos para a Pinacoteca. Pensa até em fazer um Museu de Gravura). Dizer que seria possível foi suficiente para que ela resolvesse que ia ter e que poderia ser aberta um mês depois. Mas, demorou mais tempo, porque o projeto era meio complicado. Demorou dois meses e meio para ficar pronta. Independente do trabalho ser meu, posso dizer que ficou muito interessante. É gostosa de se ver, porque é possível vermos, através de fotos, a montagem de Morte e Vida Severina, pelo Teatro Cacilda Becker, com o Walmor Chagas., em 1960, meu primeiro trabalho profissional, como cenógrafo e figurinista, em palco italiano. Estreei na verdade  profissionalmente em arena, um ano antes fazendo Gente como a gente, de Roberto Freire, no Teatro de Arena de São Paulo.

Vai aparecer também na exposição, como exemplo de trabalho que está sendo feito,  a montagem de Chiquinha Gonzaga, de Maria Adelaide do Amaral, um musical complicadíssimo, com trinta e oito atores, sete músicos, etc. Montei, no centro da exposição uma oficina de trabalho, com máquina de costura, desenhos e uns esquemas do projeto para que tomem conhecimento do que estou fazendo no momento, e ao mesmo tempo conhecerem um pouco de meu processo de trabalho. A exposição inteira é assim, porque a cenografia só existe no momento que aconteceu na frente do espectador, depois é lixo. Guardei fotografias, desenhos, croquis. Refiz maquetes para poder se ter uma noção do espaço que é a coisa que mais desaparece. Então estão lá uma variedade de pontos de referência para se entender como é que se trabalha  na construção de um espetáculo, desde as maquetes para estudo que são, na verdade, esquemas elementares, até as maquetes detalhadas quando a coisa se torna mais complicada. Estão na exposição, milhares de croquis, desenhos de roupas, desenhos de objetos de cena e até alguns momentos registrados durante a feitura do espetáculo, como por exemplo a montagem de Reveillon, com Regina Duarte, sob a direção de Paulo José. O Djalma Limongi Batista, que é um cineasta e um fotógrafo incrível, trabalhou conosco e fez os slides para o espetáculo.. Documentou também  as fases de trabalho, não só o meu como de todos. Então escolhi dentre o material fotográfico  momentos que deixavam claro, como é que as coisas se entrosam numa montagem. Há fotos, nessa documentação de meu trabalho com o Arquimedes Ribeiro, que é um dos o maiores cenotécnicos do Brasil. As fotos não foram posadas. Djalma percorria os espaços, via o que estava acontecendo e fotografava. Há fotos de Regina Duarte com os objetos de cena e fotos dos objetos isolados. Aliás a Regina foi com a gente no Hospital do Câncer, no Lar São Francisco para escolhermos junto umas bonecas e umas colchas. Há o registro de Paulo José ensaiando com ela, com Sérgio Mamberti e Yara Amaral, todos dentro do mesmo processo de ensaio.

É possível se ter uma idéia das trinta (acho que são trinta) montagens, através do material que restou. Não é todo o meu trabalho. Fiz mais de cinqüenta cenários. Expusemos os que possuem alguma documentação. É o que eu chamo de resto do lixo. O resto foi para o lixo mesmo.                        

Me perguntam como foi que me interessei pelas artes, pelo teatro, como foi que tudo começou. Houve vários momentos. Quando eu tinha três, quatro anos, trabalhava lá em casa, ajudando minha mãe, uma moça chamada Eunice. Ela pendurava, no quintal, cobertores no varal, feito umas cortinas de teatro. De um lado, eu e minha irmã representávamos e do outro lado, a família e os vizinhos assistiam, alguns da janela e outros sentados nas cadeiras da cozinha. Agora, desenhar eu sempre desenhei. Desenhava sem parar, espontaneamente. Um desenho absolutamente convencional, de criança, como qualquer outra criança fazia.. Mas meu pai achava maravilhoso e mandava para o jornal a Folha da Manhã publicar numa sessão de desenhos de crianças geniais. Então ele recortou do jornal e eu guardo até hoje o desenho de uma barquinha, completamente ridícula. Meu pai, filho de italiano era daquele tipo que adora expor os filhos, adorava exibir os filhos. Minha irmã era muito boa aluna, considerada a inteligente da família e eu, era o meio louco, o desligado. Então era preciso que eu tivesse algum valor, se não meu pai ia ficar muito triste de me ter produzido. Então me mandava tocar piano para as pessoas, mostrava meus desenhos para todo mundo. Era uma coisa meio... Então me acostumei, desde pequeno, a ser sempre muito exibido, não por ser exibido, mas por me exibirem. A desinibição foi muito boa. Não tenho o menor problema de me exibir. Nunca acho que estou fazendo alguma coisa errada.

Teatro, eu comecei fazendo meio por acaso. Eu era aluno da Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna, uma escola interessantíssima que existia em meados dos anos cinqüenta, funcionando na Praça Roosevelt. Fui aluno de Lívio Abramo e de um pessoal ótimo que dava aula de gravura, de desenho e cerâmica. Eu era bolsista e passava o dia lá, limpando torno, preparando barro, enfornando barro. Com isso tive um contacto muito íntimo com as técnicas, com esse pessoal todo que era muito bom e acabei amigo de todos. Fui convidado por uma das moças, Cynira Stocco (acho que era aluna também) para orientar e fazer a cenografia de uma peça infantil, Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado com crianças em uma comunidade de um frade dominicano que tinha voltado da França, depois de uma experiência como padre operário. Inconformado, na sua volta ao Brasil, de ter que ficar trancado no Convento, a Ordem permitiu que ele assumisse e desenvolvesse, em moldes atuais na época, uma comunidade em volta de uma Capelinha, na Estrada do Vergueiro. Mais tarde abriu uma industria de móveis, Unilabor Móveis, cujo design foi feito pelo Geraldo de Barros. Era uma comunidade de trabalho, não tinha nenhum capitalista dono. Os próprios trabalhadores eram os donos.

Havia também na Comunidade, um grupo de operários que fazia espetáculos, a princípio dirigido por Clóvis Garcia  e depois pela Maria Thereza Vargas. Maria Thereza foi para o Rio de Janeiro, em 1956 trabalhar com a Maria Clara Machado, a fim de ajudar  na organização de uma publicação, os Cadernos de Teatro, uma revista para auxiliar grupos amadores. Vendo meu trabalho com as crianças  ficou tão encantada, digamos com o meu entusiasmo, que passou para mim a responsabilidade do grupo adulto. Lá, então eu escrevia, fazia cenários e dirigia. Trabalhei na Comunidade quatro anos, ao mesmo tempo que fazia a Faculdade de Arquitetura.     

O Vergueiro e a Arquitetura foram escolas para mim. O Teatro em primeiro lugar, é claro. Mas o frade me expulsou. Sem querer, eu  havia me tornado um líder e o grupo saiu comigo. Foi uma coisa muito bonita. E aí, livres de qualquer instituição, fizemos um tablado e representávamos em escolas, associações de amigos do bairro e clubes de futebol.  Acabamos representando no Teatro de Arena, a convite do Augusto Boal e do Gianfrancesco Guarnieri que tinham visto uma de nossas montagens no Vergueiro, e muito entusiasmados queriam até me chamar para o Departamento Operário do Arena. Era um tempo em que tudo isso era muito bonito. Nesse momento o grupo se dissolveu apavorado. E eu parei de fazer teatro e comecei a fazer só arquitetura. Mas fiquei muito amigo do pessoal do Teatro de Arena. Fiz o cartaz e o programa de Chapetuba Futebol Clube e, aos poucos, comecei a participar das montagens fazendo cenários e figurinos. Até que o Boal comprou o Teatro do José Renato e me convidou (e também o Paulo José, o Juca de Oliveira e o Guarnieri) para ficarmos sócios-donos. Então me tornei dono do Teatro de Arena.  

Trabalhei no Teatro Oficina, com Zé Celso. Mas não fiz cenografia e figurinos para todos os espetáculos.  Eu brigava muito com todo mundo. Nunca achei que estavam fazendo o teatro que eu gostaria de fazer. Gostam muito de literatura dramática já escrita. Detestam autor vivo e eu queria fazer tudo, desde o roteiro. Se se faz cinema assim, porque não se pode fazer teatro assim ? Mas não conseguia convencer ninguém. O Boal começou a fazer roteiros a partir de peças clássicas, mas o Zé Celso não. Interpretava livremente um autor existente.Eu não gostava dessas coisas. Detesto Oswald de Andrade. Acho um chato, um ginasiano bobo que gosta de ficar assustando a tia. Gosto mais do Mário de Andrade. Sempre fui acusado de psicanalizado pelo Zé Celso. As coisas que conseguia fazer com ele, acho que deram muito certo e as que não fiz deram mais certo ainda e eu nunca me arrependi de não ter feito, mas adorei ter visto, por exemplo, O Rei da Vela. Eu não quis fazer mesmo. Detestava, achava uma bobagem. Quando vi feito, disse graças a Deus que existe e graças a Deus que eles não concordaram comigo e que conseguem fazer coisas que eu nem pensava fazer. Sempre achei salutar, ter essa personalidade de não fazer o que não tenho vontade. Não que não tenha feito coisas que não gostasse. Fiz muitas, mas em geral envolvido pela afetividade. Há momentos que você não consegue falar não.Todas as vezes que não falei não quando sabia que deveria ter falado, fiz bobagens, fiz trabalhos muito ruins, mas também não me arrependo. Quando estava com o pessoal do Vergueiro, escrevia com a maior sem cerimônia, porque ninguém ia ver. Era coisa só do bairro, era uma delícia. É ótimo quando você consegue experimentar sem medo. Nossa!

Um dia apareceu em minha casa, o Walmor Chagas. Eu tinha parado de fazer teatro um tempo porque teatro esgota, fica tão difícil que chega uma hora que a gente fica de saco cheio. O teatro em si não é difícil, mas a infra é tão frágil que você se cansa de ser tão marginal, de ser tão marginalizado, de ser tão paria da sociedade, quando não é visto até de forma pior. Walmor me contou que ia fazer mais um dos espetáculos de poesia que ele costumava fazer. Falei : “Que bom ! Com quem você vai fazer ?” - “Com o Silnei Siqueira”,  Eu disse então : “Se eu fosse você não fazia com o Silnei”. Ele perguntou:  “Por que?”  Eu respondi :  “Porque eu queria fazer.”  Ele ficou muito contente porque não havia me convidado porque não passava pela cabeça dele que eu quisesse fazer. E começamos a escrever tudo a partir de um roteiro que ele tinha feito com algumas poesias. Explodimos esse roteiro e uma coisa que achei gostoso foi selecionar letras de canções de Caetano Veloso, Chico Buarque, e de outras músicas populares, que acho verdadeiros poemas cantados. Quis que ele falasse essas letras, porque ele fala demais de bem. Construímos o roteiro com todos os participantes integrados no projeto. Quando existe uma grande comunhão entre as pessoas, os incidentes e acidentes são muito informativos. É incrível ! A gente viajava junto, por exemplo, e de repente a gente observava um crepúsculo, e ele passava a entrar na concepção do espetáculo de mil maneiras, como cor, como clima. Ele passou a informar. E o espetáculo acabou ficando muito inspirado nele. Maria Thereza Vargas trabalhou conosco e teve uma participação muito importante. Foi sucesso para quem foi ver, mas muito pouca gente foi. Teve coisas na mesma época que alcançaram mais sucesso. Ruth Escobar foi assistir e me disse : “Você é louco ! Fazer um espetáculo sobre a alma, dentro dos padrões comerciais,  pensando que alguém vai se interessar e que vai comprar ingresso para ouvir uma conversa sobre alma ?... Só você mesmo que é completamente alienado.”

Voltando à exposição Rever Espaços quero informar que ela abre agora, no finzinho de julho e fica até fins de novembro. Durante a exposição pensamos em uma seqüência de eventos, com a finalidade de dinamizar a amostra. Conversando com Luiz Augusto Contier, que é a pessoa que praticamente coordena a exposição, pensamos programar cinco coisas : na primeira discutiríamos Memória. Conversaríamos sobre o Centro de Documentação, refletindo sobre o que é Memória, como é que a coisa funciona no Brasil, já que a exposição parte de um Centro de Documentação, inclusive ligado à Secretaria Municipal de Cultura, da Prefeitura de São Paulo. Eu gostaria de convidar o Aziz Ab’Saber para ser uma espécie de centralizador da conversa, porque para mim ele é a maior autoridade no Brasil, no assunto. Discutiríamos sobre a necessidade que a gente tem de Preservação, não da Memória no sentido erudito, mas da Memória no sentido existencial, da saúde do próprio país. O Aziz se preocupa inclusive com as florestas, com as áreas naturais, ou seja, preservação de uma Memória em outro nível. Para o segundo evento convidaríamos o pessoal do Idart, que trabalhou pra burro para que esta exposição acontecesse. Discutiríamos os problemas que eles têm, os problemas que estão passando. No terceiro evento, pensamos em um papo meu com os diretores com quem trabalhei. Outro, um papo entre os cenógrafos. Eu acho que vai ser um papo simpático. O quarto seria um workshop feito com as crianças que trabalham no ateliê do próprio Centro Cultural, sob orientação de uma equipe de educadores especializados. Queria fazer com elas uma espécie de workshop em termos de improvisação teatral. Será um trabalho interno, no próprio Centro Cultural.

Finalizando vou mostrar filmes que fiz: um super 8, tipo documentário; um filme do Djalma Batista, no qual fiz a cenografia chamado Porta do Céu e O Profeta da Fome, do Maurice Capovilla. Nesse ciclo poderíamos então discutir a cenografia no cinema.

Não acredito que Rever Espaços possa viajar. Meus amigos de Pernambuco, já pediram para o Recife, os do Rio de Janeiro para o Rio, os da Bahia para Salvador. Compreendo perfeitamente a impossibilidade da viagem. A gente vive em um país tão pobre, quase que diria, em um país flagelado de norte a sul, de leste a oeste. E, como fazer teatro há trinta anos significa vivenciar muito próximo esse tipo de flagelo, entendo com a maior tranqüilidade que talvez seja impossível usar dinheiro público para fazer esse tipo de circuito cultural. Talvez arranjar alguma entidade cultural, ou alguém que se interesse. Adoro o Nordeste, acho um dos Brasis mais bonito, mais interessante, mais brasileiro e muito rico em comunicação interpessoal. Lá, a tecnologia é tão precária que tem ator na rua vendendo coisas, cantando. Há teatro em qualquer canto. Não existe o teatro de palco, de edifício teatral, na tradição ocidental. Não existe, é evidente, infra para segurar. Existem grupos amadores muito simpáticos. Vi, praticamente, todos eles. Querem muito saber e entrar em contacto com o que se faz no sul. Fico quieto. Quando vou para lá eu me manco, aliás quando vou para qualquer outro lugar eu me manco, para não bancar o imperialista de São Paulo, andando pelo Brasil, querendo levar cultura. Não tenho nenhuma vocação de jesuíta. Não acho que sejam selvagens, mas tenho a impressão de que gostariam muito de ver a exposição, inclusive pela possibilidade de conhecerem e discutirem. Não são muito estimulados, mas até mesmo discutir um tipo de produção, que fizemos aqui no Teatro de Arena e que pode ser feito lá, se quiserem. 

Flávio Império

FLÁVIO IMPÉRIO

DEPOIMENTO DE FLÁVIO IMPÉRIO A RADIO CULTURA
(1983)