TEATRO DA COMUNIDADE CRISTO OPERÁRIO | X |
A Comunidade de Trabalho Unilabor foi uma experiência social levada a efeito entre 1950 e 1967 no bairro do Alto do Ipiranga, na cidade de São Paulo, por um grupo de operários, intelectuais e artistas, liderados pelo dominicano frei João Batista Pereira dos Santos (1913-1985). Consistiu em ações culturais, educativas, de catequese religiosa, educação política e, principalmente, na criação de uma fábrica de móveis modernos, funcionando em regime de autogestão, entre agosto de 1954 e fevereiro de 1967 nesse que era, então, um bairro da periferia de São Paulo. O objetivo maior da experiência foi a desalienação do trabalhador, a ser obtida por meio de sua transformação em proprietário coletivo, com todas as responsabilidades e tarefas que isso supõe e, por outro lado, no seu elevamento espiritual e cultural, num processo de enriquecimento não apenas material, mas sobretudo moral.
Também conhecida como Comunidade Cristo Operário (pois antes da fábrica existiu a capela do Cristo Operário, criada em maio de 1950), ela viveu momentos muito distintos que corresponderam às diferentes composições de seu corpo de colaboradores e aos influxos provenientes de seus respectivos projetos ideológicos. O mais importante deles foi a matriz católica advinda do movimento Economia e Humanismo, fundado pelo também dominicano Louis-Joseph Lebret, em 1941, na França parcialmente ocupada pelos nazistas, e tributário das correntes progressistas do catolicismo francês, formadas na primeira metade do século XX no embate com o laicismo do Estado.
Economia e Humanismo foram, e ainda são, parte do grande e difuso movimento conhecido como “Terceira Via”, que propõe a ação planejadora do Estado para limitar, e no limite resolver, as mazelas da sociedade industrial, centradas na cidade, mas sem abandonar conceitos importantes como a propriedade privada e as liberdades individuais. Nesse sentido propõe-se atuar na elaboração de planos estratégicos para o desenvolvimento (o qual terá um caráter humano) e incentivar a criação de comunidades de trabalho autogestionárias do tipo da Unilabor, no Brasil, ou de Boimondau, 1941-1972, na França. A palavra comunidade carregou, nesse período de recuperação pós-guerra, um sentido de transformação social em torno do qual se reuniu um setor expressivo da intelectualidade progressista tanto na Europa quanto em países da América Latina, onde essa corrente de pensamento teve grande importância.
A partir dessa matriz ideológica frei João buscou aliados e os conseguiu nos mais variados setores sociais, desde artistas plásticos modernos, militantes católicos operários e universitários, membros do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e de partidos trotskistas e intelectuais de esquerda em geral, até indivíduos integrantes da burguesia local. Alguns destes últimos compreendiam e até apoiavam a existência da Unilabor enquanto empresa autogestionária; outros, porém, faziam questão de ressaltar seu apoio exclusivo ao frei João e à obra religiosa que levava a efeito. De todo modo, uns e outros, no fundo, não estavam inconscientes de que se tratava de uma experiência que continha riscos, e estavam dispostos a arcar com essa possibilidade.
A segunda força programática ativa na Unilabor foi estética, representada pelo movimento concretista, vetor brasileiro do construtivismo internacional. Frei João se aliara, em 1952, ao artista plástico Geraldo de Barros, que encontra na proposta de empresa autogestionária uma expressão adequada de seu próprio programa estético também pautado no concretismo, na medida em que ambos convergem para a integração de elementos de conscientização e reflexão no ambiente produtivo, a fábrica.
A empresa Unilabor produziu, entre 1954 e 1967, um conjunto muito consistente de móveis para o ambiente doméstico, fundado num sistema modular e componível, que permitiu uma produção racionalizada. Esses móveis foram comprados e admirados por uma parcela da classe média paulistana, que conhecia os dominicanos, frei João, Geraldo de Barros e a proposta ideológica da Unilabor, mas também chegaram a ser vendidos em quatro lojas próprias da empresa, algumas em locais disputados pelo comércio elegante de São Paulo, como a Praça da República e a Rua Augusta, além de uma quinta, em Belo Horizonte.
A terceira força da Unilabor foram seus colaboradores voluntários, que se engajaram em atividades culturais como teatro infantil, apoio pedagógico às crianças do bairro em idade escolar, ateliê de artes e atividades físicas, também para crianças. Junto aos operários houve um intenso esforço de elaboração intelectual, com palestras e debates diretamente políticos, além de discussões estéticas com Geraldo de Barros. Essa colaboração iniciou logo em 1950, com a cooperação dos muitos artistas plásticos modernos que foram convidados a decorar a capela: Alfredo Volpi, Bruno Giorgi, Yolanda Mohalyi, Moussia Pinto Alves, entre outros, e também a então estudante de teatro Maria Thereza Vargas, levando à frente um grupo de teatro adulto.
Em 1956 Maria Thereza Vargas se transfere para a cidade do Rio de Janeiro e convida o estudante de arquitetura Flávio Império para substituí-la. Flávio permanece na comunidade, à frente do teatro, até fevereiro de 1959 quando, juntamente com outros colaboradores, retira-se em função de disputas ideológicas com o próprio frei João Batista. Estava em jogo, nessa ocasião, a concepção coletivista da Unilabor, vista por alguns, Flávio entre eles, como demasiadamente conservadora por não questionar a ideia da propriedade privada. Esse foi o primeiro rompimento importante a que se submeteu a comunidade. A seguir, entre os anos 1959-64, a empresa continuou crescendo economicamente, mas as realizações espirituais e morais, importantes na fase anterior, começaram a desarticular.
Uma segunda tentativa de politização do cotidiano da fábrica foi posta em prática pela incorporação de companheiros oriundos agora de sindicatos e não mais de partidos políticos diretamente, como antes. Trata-se da etapa da vida da Unilabor na qual, depois da saída de todos os intelectuais apoiadores no início de 1959, frei João Batista tentou rearticular as frentes de trabalho desfeitas, idealizando a criação de um “Instituto de Cultura Operária”, que não foi à frente. Já do ponto de vista da produção de móveis foi uma época rica, pois foi possível construir, com financiamento governamental, um novo edifício para a expansão das oficinas, finalizado em 1962.
Ao contrário do que se poderia esperar, no entanto, o sucesso comercial da empresa não suscitou um aprimoramento em seus fundamentos ideológicos. Como se viu, não foi por falta de tentativa nesse sentido, mas o fato é que os esforços de reflexão se voltaram contra a premissa solidária: o crescimento econômico permitiu, contraditoriamente, o surgimento de um desejo por acumulação monetária individual, oposto a qualquer consciência solidária. O resultado imediato foi a decisão equivocada de priorizar a distribuição de dividendos aos associados, numa fase de crescimento na qual era preciso poupar.
Potencializando esse cenário internamente adverso, o golpe de 1964, com a mudança radical da política econômica do país e a interrupção das fontes de financiamento para empresas de pequeno porte, como a Unilabor, acabou sendo fatal para a sobrevivência da empresa. A falta de uma poupança interna impediu que a Unilabor suportasse a ausência momentânea de crédito bancário sem recorrer a fontes alternativas muito mais custosas, como os agiotas, para continuar produzindo.
Tal prática trouxe dificuldades adicionais para o gerenciamento da empresa, pois exigia que fossem ultrapassados os limites da racionalidade contábil, ao impor acordos não escritos com esses credores informais. A situação cada vez mais crítica faz com que, em curto espaço de tempo, muitos companheiros decidam abandonar a empresa, para fugir da realização de perdas em suas cotas, em vista de um colapso que se afigurava cada vez mais próximo. Essas defecções acabam, por sua vez, por adiantar a falência, dada a descapitalização final que provocam. A partir daí não é mais possível recuperar as contas, e o espírito cooperativo e solidário, que poderia reverter a situação, já se havia perdido.
A Unilabor se dissolve no início de 1967, depois de três anos tentando superar dificuldades como as narradas aqui. Seu encerramento não pode se explicar de modo simples ou unívoco, já que se tratou de uma experiência fortemente ideológica, comprometida simultaneamente com esferas tão complexas como o humanismo católico, o programa estético modernista e a política do trabalho em seu cotidiano fabril. A desalienação pretendida não foi certamente obtida, e talvez nem pudesse ser obtida isoladamente, sem a complementação daquelas reformas sociais mais amplas, do tipo das que o programa de Economia e Humanismo propunha. Mas uma experiência importante, nesse sentido, foi realizada.
MAURO CLARO