ARENA CONTA ZUMBI | X |
ARBITRAGEM E CRITICA
As transformações sociais que o Brasil vem sofrendo nestes últimos tempos processam-se de forma tão veloz que tudo revolucionam, inclusive o conceito de certas palavras de consumo obrigatório, como "democracia" e "liberdade". Pessoas incautas, que não se apressam em descobrir os novos significados das velhas palavras, arriscam-se irremediavelmente ao analfabetismo. Para evitar este fato grave, é necessária e obrigatória a leitura das terceiras paginas de certos periódicos tradicionais, excelentes explicadores das evoluções linguísticas.
Ali, pode-se aprender, por exemplo, que "para se manter a liberdade e necessário cercear a liberdade dos liberticidas", donde se conclui que liberdade passou a ser uma questão de bang-bang: aquele que for mais rápido no gatilho é um II “democrata" e o mais lerdo “Um subversivo". Aprende-se também que democracia é um regime político onde todos podem expressar livremente suas ideias, desde que, como é óbvio, sejam idênticas àquelas defendidas por quem detém os tanques, digo, o poder legitimado.
Um dramaturgo é um homem que lida com palavras: esta é uma precária profissão para os dias que correm. O sentido daquilo que escreve pode amanhecer modificado por uma nova lei ou por um manifesto de qualquer associação feminina. Se isto pode acontecer com qualquer de nós, que estamos vivos, quanto mais com Sófocles, indefeso trágico grego, morto há dois mil e quinhentos anos: até a sua Eletra, escrita quando ainda não existia o perigo da infiltração vermelha, tornou-se, uma bela manhã, obra subversiva. O furor punitivo das senhoras arregimentadas não tardará a atingir os próprios dramas sacros medievais, onde se lêem coisas como esta: "Cristo há-de chegar, e os dias de padecimento estarão findos!" Certamente, trata-se de uma senha contra revolucionaria, ou os leitores se esqueceram de que as mesmas palavras já não significam as mesmas coisas? Cristo, num drama sacro medieval, s6 pode ser um Fidel Castro, pronto para a luta fratricida com derramamento de sangue.
É neste panorama que temos que escrever. Sério de admirar, se fôssemos entendidos, especialmente pela crítica teatral...
No Brasil, a função de crítico teatral sempre foi tida como a de juiz supremo; os critérios de cada um eram indiscutíveis, e isto pela simples razão de que nunca foram relevados. Oferece-se uma récita especial para que os juízes julguem os espectáculos, mas jamais foram os juízes submetidos ao julgamento dos artistas.
E isto é necessário. Agora, e inevitável. Não lhes conferimos magistratura. Entre eles e nós artistas, não existe julgamento, e sim uma peleja. Se vai alguém arbitrá-la, será o público. E o público são homens, e os homens estão divididos, e nós teremos os nossos jurados e eles os deles.
Se isto é verdade para o teatro de todo mundo, maior verdade será para o teatro brasileiro, que é, no mundo, aquele que mais assanha as senhoras e os poderes vigentes. Outros países terão teatros mais evoluídos tecnicamente, atores mais bem treinados vocalmente, dramaturgos mais limpos e corretos, diretores mais eruditos e mais artesãos; neste momento, o Brasil tem o teatro mais enérgico, mais atuante, mais recusador de mordaça; tem o teatro mais temido e incômodo. Às transformações recentes, respondeu o teatro formidavelmente: Frisch (Andorra e Biderman), Sófocles (Eletra), Miller (Depois da Queda), Moliére (Tartufo), Brecht (Ópera dos Três Vinténs), Plauto (Soldado Fanfarrão), (O Caso Oppenheimer) e mais os jovens Opinião, Zumbi e Liberdade, Liberdade.
Esta função libertária do teatro exige o emprego e a descoberta de novas técnicas dramatúrgicas e de encenação. A esta necessidade estética e histórica, responde a Crítica: "Mas isso não é teatro", esquecendo-se de que teatro é tudo aquilo que nós fizermos. Lamentamos obrigar esses senhores abandonarem seus velhos critérios e padrões, se desejam aferir o teatro novo brasileiro. Lamentamos que a existência desse teatro lhes de tanto trabalho, mas queremos consolá-los com o fato de que a sua criação nos obriga a sérios esforços.
Das varias acusações de que vem sendo alvo Arena Conta: Zumbi uma das mais curiosas é a que nos atribui um "universo maniqueista, onde os negros são imaculadamente puros e os broncos irremediavelmente perversos'', onde os negros "valentes, líricos, fortes e sensuais, com deliciosos toques de erotismo" são derrotados, surpreendentemente, pelos brancos “decrépitos, adamados, pernósticos e ridículos".
Trata-se de uma recordação apressada do texto. A bem da verdade, devemos lembrar que os negros são derrotados porque possuem, na peça, uma outra característica fatal: nao habituados à liberdade, à condição de sujeitos do movimento social, procuram, a cada vitória da sua mão livre, atribuí-la à interferência divina, submetendo-se a um novo Senhor que é, no contexto, um simples preposto dos brancos. Os negros submetem-se a Deus - ao mesmo Deus que os brancos utilizam para reconduzí-los à escravidão.
Além disso, os negros não são derrotados pelos broncos "adamados" que com eles assinam a paz, mas sim pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, cujos pianos pacíficos de bem perto se assemelham aos do senador Barry Goldwater: "E se nem assim conseguirmos a rendição , então será o extermínio total: nenhum negro fugido ficara em vida. Teremos assim, conquistado a paz". Barry aplaudiria em cena aberta declarações tão suas. Os negros são derrotados pelo novo governador, Dom Ayres de Souza de Castro, cujo credo na violência e na necessidade de tutelar o povo fica mais que exaustivamente demonstrado no texto e que declara em seu discurso de posse: "Vós (os adamados) guerreais como quem faz política; eu farei política como quem guerreia!" A partir da bélica entrada em cena do novo governador despótico não ha mais cenas adamada em Zumbi.
A perversidade branca está principalmente exposta na cena entre os poderes civil, militar e eclesiástico. Devo confessor que toda esta cena foi escrita com documentos históricos autênticos, bastante encontradiços em qualquer biblioteca ainda não varejada pelos agentes da democracia, inclusive no livro de Edison Carneiro sabre os quilombos dos Palmares. “O hábito da liberdade torna o homem perigoso!" - a perversidade desta linda frase do Bispo de Pernambuco e de autoria do próprio Bispo mencionado. infelizmente, não foi escrita por nos, dramaturgos, que apenas a compilamos.
E, quanto a pureza negra: os negros matam, raptam escravas e mulheres brancas e, na luta contra os brancos, usam ate ofídios, répteis e aracnídeos. Onde a “pureza imaculada?" Fico muito contente se a Crítica os declara puros, mas quais os seus critérios? Serão os mesmos nossos? Serão OS de Gramsci para quem o proletariado é o moderno Príncipe e pois, vale tudo, incluso ofídios? Não. Infelizmente não, e isto a própria Crítica se encarrega de proclamar: “a esquerda brasileira tem vivido neste últimos anos em infeliz conúbio com a demagogia". É curioso observar que as pessoas que procuram negar aos dramaturgos qualquer utilização de temática política, por motivos políticos, negam a obra de arte.
Vamos aos fatos: todos nos sabemos que a demagogia não é uma entidade, um partido político, mas sim uma forma de mistificação da realidade, de larga utilização. Esse fato geral da vida política brasileira foi , pela crítica, particularizada na esquerda. Dizendo que a esquerda "vive em conúbio infeliz com a demagogia" e esquecendo de dizer que, com a direita o conúbio demagógico tem sido ultimamente felicíssimo, não estará a Crítica sendo também maniqueísta, atribuindo à esquerda todos os negrores, e à direita todas as purezas? Não estará agindo a semelhança de certo exército estrangeiro que invade um país vizinho para, a pretexto de evitar "maior derramamento de sangue e maior caos", e intitulando-se neutro e árbitro supremo, responde ao fogo de uma das facções em luta, preservando a outra? Podemos nós, artistas, aceitar estes juízes? Ou devemos combatê-los?
Os mesmos juízes sugerem que devemos nos interessar mais pelos "fatos e um pouco menos pelas abstrações". Correto, mas logo a seguir afirmam também que ha uma certa distância entre "o cabaret literário, a maneira alemã, que vive de alusões aos fatos do dia e a peça de teatro que, mesmo engajada, deve pairar a uma altura um pouco mais elevada". Sobre este cotejo de dois textos, eu gostaria de fazer três observações: 1) da mesma forma que se afirma a existência de textos engajados e textos não engajados, eu quero afirmar que todos os textos são sempre engajados, ou com as ideias de esquerda ou com sua antítese, e quero cantar com Bertolt Brecht, como canto Zambi em nossa má tradução: "Aí tristes tempos presentes, em que falar de amor e flor, e esquecer que tanto gente está sofrendo tanta dor". Quero gritar como grita o Tio ao Padre: “A Senhora Carrar e seus filhos estão em segurança?" Tenho a certeza de que os nossos juízes não ficariam silenciosos como o Padre e responderiam: "Não, a senhora Carrar e seus filhos, e todos nós e todos os mais, não estão em segurança, e por isso é necessário tomar partido, como todas as peças tomam partido, algumas ao lado do poder vigente, sejam quais tenham sido os meios pelos quais esse poder foi legitimado, inclusive as peças do senhor Ornstein, que são muito mais engajadas do que qualquer outra do repertório do Arena, do Oficina, do Decisão, ou do Opinião". Diriam isso e nos estaríamos de acordo. É um fato por demais óbvio que todas as peças estão engajadas, inclusive as obras primas do passado, inclusive a Eletra de Sófocles - qualquer senhora do MAF sabe disso, não e preciso nem ser crítico teatral. 2) da mesma forma que se afirma que "há uma certa distância, etc." eu quero afirmar que não ha distância nenhuma entre o cabaret literário, à maneira alemã, o circo à maneira brasileira, a revista à maneira do praça Tiradentes, e o teatro que, na minha opinião, não deve pairar a altura nenhuma, mas deve estar profundamente enraizado no seu momento. Qual das duas afirmações é a mais válida? Em favor da primeira tese pode-se argumentar que assim tem sido sempre, desde os tempos de antanho; porem, é igualmente certo de que nada obriga a que continue sendo assim até a eternidade. É importante notar que não nos interessa saber como era o teatro, se estamos empenhados em fazê-lo. 3) parece-me existir um profundo desacordo entre as duas sugestões oferecidas: devemos nos prender aos fatos, mas não aos fatos do dia. (Imagino que talvez se pretenda promulgar uma lei proibindo a utilização de eventos históricos com significados atuais esta lei tornaria ilegítimas muitas tentativas brechtianas, muito mais importantes do que as nossas). Pergunto: como vamos nos prender aos fatos concretos e, ao mesmo tempo, "pairar a uma altura um pouco mais elevada?" Mas, graças a Deus, existe solução para este caso delicado: devemos prender-nos aos fatos concretos que contenham a essência do universal (em outras palavras, aos fatos concretos que sejam também "particulares típicos" e não "particulares singulares"). Isto permitirá aos espectadores, de posse de dados particulares, extrapolarem os significados mais gerais. E isso, felizmente, tem acontecido nos nossos espetáculos. Fornecemos certos dados, alguns estatísticos, sobre a luta e a libertação dos negros dos Palmares, e a nossa plateia entende claríssimamente que estamos falando de liberdade em termos mais gerais, falando do cerceamento no nossa liberdade hoje, agora e aqui, falando de brancos, negros e amarelos que no mundo inteiro lutam pela sua liberdade, e pela sua vida.
Em outra investida crítica, colocaram no nossa cabeça (na minha e na de Guarnieri, co-autores do texto) um pensamento que absolutamente não estava Iá: "acreditam que a Iuta social se faz através de gigantescas simplificações, cuja finalidade é fortalecer o ardor dos combatentes”. Há aqui um evidente exagero da função específica do periodista, função essa que não pressupõe a leitura de pensamentos alheios, mas apenas a constatação e o juízo de afirmações efetivamente feitas e esta nós não a fizemos. É bom que saibam todos que nós não pensamos assim. Pelo menos, não pensamos isso mais do que o oficial em guerra que, no hora do combate, simplifica gigantescamente a realidade gritando "Fogo!", ao invés de ministrar uma Ionga aula aos seus soldados, dedo no gatilho, para explicar-lhes as complexidades econômicas, políticas e sociais que determinam a eclosão de uma guerra, e a necessidade de vence-la.
Há gêneros de teatro mais complexos e outros nem tanto. Alguns autores, não obstante haverem escrito textos de extraordinária complexidade como Galileu Galilei, não são por isso proibidos de escreverem peças mais simples como A Exceção e a Regra. Não é possível aceitar que peças diferentes devam ser julgadas segundo critérios iguais. Não se pode exigir que La Fontaine e Esopo dotem seus lobos, cordeiros, raposas e uvas de psicologismos proustianos (não vai aqui nenhuma desconsideração a Proust). Seria demais esperar que o Chapeuzinho Vermelho revelasse insuspeitadas tendências masoquistas e se deliciasse ao ser devorada, ou que o Lobo Mau sentisse qualquer complexo de culpa, ou remorsos, ou frustrações. Se exegeses desse tipo já foram feitas por alguns psicanalistas, este é um problema dos psicanalistas e não dos autores. A simplicidade é própria da fábula, e a fábula é o gênero de Arena Conta: Zumbi.
A bateria deve ter assustado alguns críticos que perguntam: “Sound and Fury - será esse por acaso o ideal do nosso teatro de esquerda?" Pela pequena parte que me toca respondo: não necessariamente. O que não impede que sound and fury seja uma de suas etapas válidas. É verdade que nós admiramos Sartre e Brecht, mas seria pecado nosso demonstrar por eles qualquer sentimento de vassalagem. Só porque eles, via de regra, ''autores revolucionários pelo conteúdo do seu pensamento objetivo" nos indiquem os seus caminhos, não quer isso dizer que, outras vezes, não nos possamos sentir tentados a seguir outros caminhos mais furiosos e barulhentos, mais de "comoção generalizada" como costumava fazer, por exemplo, Alfred Jarry. Não reconhecemos nenhuma lei dogmática que afaste do palco o sound and fury , como também não reconhecemos nenhum dogma estético que nos impeça de gritar no palco por aquilo em que acreditamos: a liberdade.
Muita gente acredita que o teatro não deve tomar partido. Eu, ao contrário, creio que minha presença no teatro brasileiro só se justifica porque tomo partido, sempre. Se assim não fosse, preferiria calar-me.
AUGUSTO BOAL