OS FUZIS DA MÃE CARRAR | X |
Os Fuzis da Senhora Carrar
Aqueles que sistematicamente torcem o nariz ao teatro épico de Brecht, à sua dramaturgia essencialmente didática e dialética, ao sentido antidramático e antiaristotélico que caracteriza sua obra, ao assistir a Os Fuzis da Senhora Carrar, atual cartaz do teatro de Arena, dificilmente terão oportunidade de repetir o costumeiro sestro. Em Os Fuzis..., a menos épica de todas as peças de Brecht, os espectadores não se verão às voltas com os processos dramáticos utilizados pelo autor de Galileo Galilei, mas sim com aqueles usualmente conhecidos. Ao contar a história da senhora Carrar e seus filhos, a única e exclusiva preocupação do autor foi narrar dramaticamente um fato, uma situação. A mesma situação que encontramos retratada em A Mãe, escrita por Brecht em 1930/1, baseada no original de Gorki. Nesta peça, Pelegea Vlassova, a mãe, coloca-se na mesma posição da senhora Carrar, com relação aos filhos, isto é, tudo faz para protegê-los, para que os mesmos não se vejam envolvidos em ações revolucionárias que possa prejudicá-los, como já acontecera com o pai, morto em um desses movimentos. Repete-se em Os Fuzis... o mesmo enredo dramático de A Mãe e em ambas as peças, ao tombarem os filhos, as mães continuam a luta encetadas por eles/ A bandeira que Pelagea Vlassova conduz numa manifestação de popular protesto, arrastando cargas de cavalaria e as balas da polícia, corresponde ao fuzil que Teresa Carrar empunha, sem sombra de medo, contra as forças dos “generais”. Mas a analogia que existe entre as duas personagens e o enredo cessa quanto à estrutura das peças. Em A Mãe, Brecht apela para todos os recursos épicos de seu teatro, emprestando ao desenvolvimento da trama ritmo dinâmico, acelerado, intensificado pelo acompanhamento musical descritivo das composições de Eisler. Em Os Fuzis... há como que uma fuga consciente à forma épica, mas nem por isso a peça deixa de ser menos metódica, lógica, dialética e didática. Esplendidamente bem estruturada, desevolve-se em ritmo de ação e dramática que cresce continuamente, do começo ao fim do espetáculo. O clima de tensão criado pelo autor pode ser comparado a círculos concêntricos produzidos por objeto ao cair em uma tranquila superfície líquida. Os círculos sucedem-se uns aos outros, tomando aos poucos toda superfície. Assim acontece com a evolução dramática de Os Fuzis, onde podemos observar o crescimento de toda ação, através da participação de cada personagem que entra em cena e que sempre acrescenta à mesma maior força. Outro ponto digno de nota é que sendo Brecht um autor caracteristicamente anti-heróico, pode parecer que em Os Fuzis tenha fugido à regra e inadvertidamente criado personagem heróica como mãe Carrar pode parecer. Acontece, porém, que esta não é a realidade, pois ao contrário de Pelagea Vlassova, que não foi levada pelos acontecimentos, mas deles tomou consciência e deles participou, Teresa Carrar só resolve tomar decisão quando compreende que a neutralidade, a passividade, a não definição nem sempre é possível, especialmente quando há vidas em jogo. Ao empunhar o fuzil, mãe Carrar não estava realizando ato heróico, mas repetindo o mesmo gesto que muitas outras mães já tinham realizado, quem sabe com maior decisão e convicção, antes, sem que fosse necessário a morte de um filho. E mais uma vez Brecht reduz sua personagem principal à medida do homem comum, monstrando-nos a inutilidade do gesto heróico, mas nos dando verdadeira lição de que não é possível permanecer ilhados em nossos individualismos perniciosos, quando um gesto nosso, uma palavra pode ser significado de verdadeiro valor. A distância que existe entre a Teresa Carrar que sova a massa do pão no início da peça, e a Teresa Carrar que tira o pão do forno, ao término desta, é a mesma que simbolicamente existe no próprio pão, no princípio amorfo, sendo necessário trabalhá-lo, submetê-lo ao fogo, deixá-lo crescer, tomar forma, para no fim tê-lo pronto, definitivo.
CARLOS VON SCHMIDT