Os Fuzis da Senhora Carrar

Estudante de medicina em Munique, Bertolt Brecht viu de perto os horrores da primeira grande guerra mundial. Servindo como enfermeiro nos campos de batalha, saiu dali com o cérebro remoendo de tristeza e revolta. Mais revolta que tristeza. A primeira peça que escreveu, Baal, é o resultado dessa experiência amarga, nascendo então no espírito de Brecht a disposição de também usar o seu teatro como tribuna de reprovação a todas as guerras.

Neste aspecto e com característica de depoimento acusatório, citamos Mãe Coragem, obra que traduz o seu irresistível propósito pacifista, propósito que perdura em Os fuzis da senhora Carrar, sendo que nesta última ele trouxe o problema da neutralidade para alicerce do enredo. Embora nas duas peças a composição dos episódios se processe de modo diverso, a verdade é que ambas convergem para o mesmo ponto, o que implica dizer que valem por um protesto de paz e um repúdio às soluções violentas das lutas armadas... Em Os fuzis, Brecht buscou o cenário da guerra civil espanhola de 36, para mostrar que a neutralidade não tem cabimento, mesmo no caso de mãe Carrar que assim procedia para evitar que os filhos participassem da chacina. Não sendo a favor do povo, nem dos generais, é evidente que o seu alheiamento favorecia um dos lados, demonstrando o autor, através do exasperante sofrimento da personagem, a utopia desse modo de pensar, principalmente porque era o povo, a que ela pertencia, que pelejava dramaticamente nas ruas. Mãe Carrar, que havia escondido muito bem os fuzis, reclamados pelo irmão numa insistência tenaz, resiste desesperadamente a uma tomada de posição, e a sua obsessão pela neutralidade, somente se quebra quando o filho mais velho, que pescava num barco, é morto pelas balas que cortavam os ares. Daí por diante, o público vê mãe Carrar não só entregar as armas, como ainda participar da luta, sendo que, em última análise, devemos compreender o seu drama pungente como uma afirmação de que não há neutralidade possível. Dirigido por José Renato, o espetáculo do Teatro de Arena ganhou maior expressão, porque seguiu a linha brechtiana com a fidelidade que deve caracterizar as encenações dos originais desse inovador. Mantendo a unidade da história, José Renato conseguiu dar dimensão exata às indicações do autor, resultando daí o rendimento convincente da representação. O filme-documentário sobre a guerra civil espanhola, exibido inicialmente, a conduta dos atores, as ilustrações musicais, cada peça funcionando no seu devido lugar, criaram a atmosfera propícia para que a platéia sentisse o que Brecht queria dizer, isto é, a sua repulsa a todas as guerras e sua mensagem de fraternidade e de justiça. No papel título, Dina Lisboa marcou o seu dezempenho com uma correção invulgar, imprimindo fote dramaticidade e realismo à sofredora figura brechtiana. Lima Duarte realizou integralmente o tipo do revolucionário, mantendo o máximo de sinceridade nas falas, gestos e atitudes. Arnaldo Weiss, o padre, não emprestou o calor e a convicção necessárias ao seu trabalho, Paulo José, o filho caçula, desembaraçado como devia ser, notando-se que estavam à vontade Ivonete Vieira e Eukaris de Moraes. Os demais, esforçados, agiram dentro de suas possibilidades. Realmente excelentes a cenografia e figurinos de Flávio Império. Os fuzis da senhora Carrar é espetáculo a que ninguém pode deixar de assistir.

MARIO JULIO SILVA