ÓPERA DOS 3 VINTÉNS
(1964)

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  • REPERCUSSÃO (1/1)
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    Décio de Almeida Prado
    O Estado de S. Paulo
    23 de dezembro de 1964

    Acervo Flávio Império

    © Décio de Almeida Prado

    A ópera dos três vinténs

    "Through all the employments of life
    Each neighbour abuses his brother;
    Whore and rogue, they call themselves husband and wife:
    All professions be-rogue one another"
    John Gay

    Primeiro houve o êxito da ópera italiana em Londres. A seguir, uma hábil paródia feita por John Gay em 1728: The Beggar's Opera (não a ópera dos ricos, como é habitual, mas A ópera dos mendigos). A ópera dos três vinténs, escrita duzentos anos mais tarde, 1928, corria assim o risco de ser apenas a sombra de um eco distante: a reelaboração tardia de uma paródia setecentista. Mas Brecht, alterando a forma e o fundo, soube conservar e ativar o essencial da obra de Gay: a virulência do ataque, amenizada pela graça da paródia. A sua comicidade, noventa por cento das vezes, consiste em desmentir as mais caras expectativas sentimentais e artísticas do público. Que há de mais puro e sagrado do que o casamento, a união de dois seres que se amam? Celebremos então, numa estrebaria, o casamento do rei dos ladrões com a filha do rei dos mendigos.

    Brecht compraz-se em mostrar que os criminosos, ao contrário do que a tradição romântica pensa, não são menos corruptos do que os aristocratas. Os seus ladrões não são vítimas inocentes do terror policial: são malfeitores mesmo, capazes, se for o caso, de matar para roubar. Os mendigos exploram despudoradamente o resquício de compaixão que ainda subsiste entre os homens. E as prostitutas não têm bom coração: vendem indiferentemente o corpo ou a consciência, entregando ao carrasco, por algumas moedas, o próprio amante.

    Os sentimentos não são desmascarados de forma menos implacável: a amizade acaba por ceder passo às conveniências e até o amor fenece diante dos interesses pessoais. MacNavalha, na hora de sua provação e agonia, termina tão abandonado quanto Cristo - mas não tenhamos ilusão: ele não chega a ser nem sequer o bom ladrão. O egoísmo, a vaidade, a mentira, a sensualidade barata, são as virtudes que ele tem para ofertar aos amigos - que o são enquanto precisam dele - e às suas inumeráveis mulheres. Se todos se agrupam à sua volta é como que em torno de um símbolo da humanidade: ele é o melhor, é o chefe, porque é mais forte e o mais inescrupuloso, o mais hábil e o mais corrupto, o mais seguro de si e o mais interesseiro.

    Mas esta conclusão cínica não encerra o diálogo que o pessimismo e o otimismo, o realismo e o idealismo (no sentido de se conceber um ideal fora e acima das condições presentes) travam no pensamento de Brecht. "De todos os animais de presa, o único sociável é o homem", observou John Gay. Em outras palavras: o homem é mau, mas gostaria, se as circunstâncias o permitissem, de ser bom. Desta contradição perene entre as nossas aspirações e os nossos atos, entre o mundo moral e o mundo real, tirou Rousseau a conclusão, como todos sabem, de que o homem é bom e a sociedade má. Brecht está mais próximo da retificação histórica imposta por Marx: o homem é bom e a sociedade burguesa má (coitada da burguesia, bode expiatório final de todas as frustrações milenares da humanidade!). Mas, em 1928, Brecht ainda não se convertera de todo ao marxismo. A ópera dos três vinténs, na direção revolucionária, não vai além de algumas constatações preliminares: por exemplo, a de que a miséria não assegura ao homem as condições mínimas para que ele possa realizar os seus impulsos humanitários.

    Nem tudo, entretanto, é preocupação ideológica em Brecht: se ele deplora, sente-se também atraído por esta existência continuamente tentada pelo mal, por estas individualidades poderosas e marginais, por esta escoria, composta de rufiões, assassinos e mulheres de má vida, através da qual a humanidade parece expandir-se e pulsar com maior vigor, desconhecendo censuras e disfarces. A admirção por François Villon (presente em mais de um trecho de A ópera dos três vinténs) mostra que ele é extremamente sensível ao que poderíamos chamar de poesia do crime e da sordice, defendendo-se do seu fascínio por intermedio do exorcismo da paródia que, como acentuava recentemente Anatol Rosenfeld, permite-lhe a um só tempo participar e manter-se distante dos seus temas. Todas as canções da peça firmam-se sobre esta ambiguidade de origem: cantam o amor, a amizade, o influxo do luar sobre o coração dos homens - mas indiretamente, ironicamente, sem se comprometer de todo. Não é a realidade mesma que a peça no propõe mas a sua imagem exacerbada e oblíqua. Brecht purgava assim não só o seu lirismo envergonhado como a sua anarquia e o seu niilismo, preparando-se para aceitar o ascetismo moral do comunismo.

    O caráter paródico do texto fá-lo oscilar permanentemente entre o sinistro e o cômico. A encenação de José Renato resolve esta duplicidade de tom sempre a favor do burlesco. O próprio Mac-Navalha é compreendido antes como uma personalidade bonacheirona do que ameaçadora: por baixo da displicência afetada do cafajeste afortunado jamais adivinhamos o "animal de presa" pronto a abocanhar e dilacerar. O desempenhos dos atores, de resto, é pouco estilizado, quase realista, não tirando grande partido das sugestões plásticas do expressionismo alemão. Estas falhas são todavia compensadas pela excelente concepção geral do espetáculo, fundadas sobre os cenários e figurinos apropriadamente carregados de Flávio Império.

    Os intérpretes têm a qualidade essencial para uma ópera, mesmo que se intitule de três vinténs: sabem cantar. Leny Eversong é a belíssima voz que todos admiramos mas valoriza às vezes a canção com truques de expressão, já mecanizados, que contradizem as intenções tanto do texto quanto da música. A Tulio de Lemos falta apenas um pouco mais de experiência de palco: ele deve livrar-se em especial de certas inflexões calcadas diretamente sobre modelos deixados por Silveira Sampaio e que, por isso mesmo, são inimitáveis. Luely Figueró é uma agradabilíssima surpresa: é bonita, canta bem e representa com uma singeleza que calha à personalidade de "Polly". Oswaldo Loureiro, menos efetivo quanto à voz do que os seus companheiros, é de longe o melhor ator, fazendo com muita graça do papel de "Mac-Navalha".

    Poderíamos, por dever de ofício, enumerar outros pequenos defeitos de encenação, natural em empresa de tamanho vulto (orquestra de 8 músicos, 30 atores em cena), mas acabaríamos por obscurecer o ponto principal: o espetáculo, em seu conjunto, é dos mais originais e audaciosos já apresentados em S. Paulo. Ruth Escobar quis inaugurar o seu teatro com alguma coisa diferente, que marcasse época - e pode-se dizer que o conseguiu. A ópera dos três vinténs é um dos clássicos da nossa época, seja pelo texto de Brecht, seja pela música de Kurt Weill (e há quem goste ainda mais da partirura do que da peça). Escrita há trinte e seis anos, continua ainda hoje a figurar na vanguarda do teatro moderno.

    ÓPERA DOS 3 VINTÉNS
    (1964)