PATÉTICA | X |
Uma parábola política. Sem os exageros do proselitismo
Ao assistir Patética, no Auditório Augusta, não se consegue vencer a perplexidade. São tantas as histórias e emoções envolvidas no espetáculo que há risco de se perder o pé quanto ao aspecto propriamente artístico. O teatro deixa de definir-se como ficção para tornar-se não apenas o registro mas a consciência viva do Brasil contemporâneo.
Nem se acredita que somente cinco anos separam essa estréia dos acontecimentos tratados na peça. Para quem não está informado: o autor João Ribeiro Chaves Neto transpõe para o palco a biografia de seu cunhado, o jornalista Wladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo.
Precipitam-se na memória alguns acontecimentos. Mistura-se a imagem do talentoso colega de redação, brutalmente sacrificado, com a do concurso de dramaturgia promovido pelo Serviço Nacional de Teatro. A comissão julgadora, em outubro de 1977, atribuía justa vitória à Patética, inscrita no ano anterior, sob o nº 143, quando se tem notícia de que orgãos de segurança confircaram o texto, impedindo assim que fosse premiado.
Num sintoma inequívoco de que os tempos melhoraram, Orlando Miranda, diretor do SNT, pôde mais tarde fazer a identificação oficial do vencedor e entregar a João Ribeiro Chaves Neto o prêmio a que tinha direito. Da edição do texto em 1978, chega-se agora ao palco, numa prova do acerto da abertura política, que tateia em consagrar a liberdade como um bem inalienável do homem.
Resumo os episódios porque a estréia de Patética não pode ser considerada ato de rotina. Liga-se a ela numa terrível tragédia, secundada por numeosas decisões de coragem e de caráter, até o lançamento no palco. O teatro brasileiro, mais uma vez, testemunha a sua inquebrantável dignidade.
Todos esses argumentos se esvaziariam se a peça não fosse boa. Chave Neto, porém, escreveu uma obra de límpida verdade humana, sem exageros e proselitismos e exteriorizando sua legítima indignação contra o arbítrio e a violência do poder. Fazer "teatro dentro do teatro" (os episódios são vividos pelos atores do Circo Albuquerque, que fechará depois do único espetáculo de A verdadeira História de Glauco Horowitz, Subintitulada...Patética) não é um recurso novo, nem há grandes elaborações na trama. O autor preferiu acompanhar com simplicidade os momentos marcantes da trajetória de Glauco e sua família, desde a fuga do nazismo europeu.
Os planos do circo e da representação permitem romper a linearidade dos acontecimentos, e é interessante, por exemplo, que Glauco, repórter de tevê, entrevista em determinado instante a companhia circense que representará a sua história. Chaves Neto preferiu, com razão, confiar mais na eloquência da própria tragédia vivida pelo seu protagonista do que tecer uma trama cheia de peripécias ou de muitos meandros psicológicos.
Acompanhando a biografia de Herzog, através dos momentos decisivos, o dramaturgo pretendeu realizar uma lúcia parábola política a propósito da solidariedade entre as ditaduras e o crime, o poder discricionário e o desrespeito pelos direitos humanos funtamentais. Não é à toa que a família de judeus, que fugiu da Iugoslávia, esperando fixar-se num país livre, acabe por reconhecer a profunda semelhança entre o regime brasileiro e o nazista, supostamente sepultado na Europa. Essa verificação funciona como uma melancólica ironia.
Chaves Neto não traçou o perfil de um herói, mas apenas o de um homem inteligente, cujo erro foi o de haver confiado em que a inocência nada tem a temer dos órgãos repressores. A brutalidade com a qual Glauco Horowitz é sacrificado na tortura se aparenta ao absurdo dos processos kafkianos. Patética dramatiza uma história semelhante às de Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri, e Fábrica de Chocolate, de Mário Prata, superando-as no terreno da emoção e do documento.
A direção de Celso Nunes é - como convém - direta, objetiva, dramática sem cair no sentimentalismo piegas, cerebral sem ceder à frieza demonstrativa. Os slides projetados, quer das notícias de jornal alusivas à morte de Herzog e suas consequências, são comentários mudos da ação, situando-a no contexto mais amplo da realidade e da História. Os cenários e figurinos de Flávio Império, compostos de elementos essenciais, têm a tônica da precisão e do gosto artístico.
Talvez a maior virtude da encenação de Celso Nuner esteja no preparo do elenco. Todos os intérpretes obtêm o melhor rendimento dos papéis, alternando emoção e lirismo, segurança e sutileza, força e sensibilidade. Ninguém sugere desconhecer um só sentimento ou idéia a serem transmitidos. Esse conceito de entendimento e clareza expressiva dá ao desempenho uma rara impressão de homogeneidade. Lilian Lemmertz (Ana), Regina Braga (Clara), Ewerton de Castro (Glauce), Antônio Petrin (Hans) e Vicente Tuttoilmondo (Waldeir) são os responsáveis por esse feito extraordinário.
Ver Patética importa em emocionar-se e refletir maduramente sobre a História contemporânea do País.
SÁBATO MAGALDI