A FALECIDA
(1979)

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    Sábato Magaldi
    Jornal da Tarde
    26 de julho de 1979

    Acervo Flávio Império

    O Teatro de Nelson Rodrigues, no melhor estilo. Admirável.

    Depois de ser, durante muitos anos, um autor praticamente maldito em São Paulo, Nelson Rodrigues vem recebendo agora o reconhecimento que merece. Bonitinha, mas Ordinária, na encenação de Antunes Filho para a Cia. Miriam Mehler, colocou-se entre as melhores montagens brasileiras do teatro rodriguiano. Chegou a vez de repetir-se a proeza, com a estréia de A Falecida, que Osmar Rodrigues Cruz dirigiu para o Teatro Popular do Sesi.

    Elogie-se em primeiro lugar a produção. Somente um elenco oficial ou mantido pela entidade dos industriários teria condições de realizar um espetáculo em que não se fizeram as economias comuns das empresas particulares. Não se trata apenas do cenário dispendioso (e de excelente qualidade) de Flávio Império: qualquer grupo dobraria os pequenos papéis e provavelmente o autor os compôs assim na certeza de que um interprete seria aproveitado em varias oportunidades. Com respeito admirável pela criação artística e absorvendo 21 atores, num mercado prestes a saturar-se, Osmar Cruz deu um grande exemplo para os que tem vista curta e mentalidade tacanha.

    Quem leu a rubrica do texto indicando que a cena vazia é preenchida apenas pelos próprios interpretes, pode supor erroneamente que a montagem não observou fidelidade a Nelson Rodrigues. O cenário de Flávio Império, embora preencha todo espaço do belo palco, utiliza elementos simplificados para mostrar os diversos ambientes. Essa solução traz o risco de forçar o aproveitamento de algumas áreas. Tendo como pólo esquerdo o quarto de Zulimira e Tuninho, e como pólo direito a agência funerária, o cenário serve, no meio, ora para a sala de jantar de uma família, ora para os aposentos do bicheiro milionário. E a concepção está tão bem concretizada que as mudanças se sucedem num ritmo dinâmico, sem o menor prejuízo para a ação dramática. Um dos mais felizes trabalhos da brilhante carreira de Flávio Império.

    A Falecida é, sem dúvida, a melhor encenação de Osmar Cruz. Formado na escola vinda de Jacques Copeau, segundo a qual o diretor tem por missão servir ao dramaturgo, Osmar pode ser criticado, ao longo dos anos, por excessiva timidez. Londe de mim advogar para o encenador uma audácia que as vezes beira a gratuidade. Mas é importante que o responsável pelo espetáculo, que une sob sua batuta a peça, o elenco, a cenografia e os outros elementos, imprima ao conjunto uma personalidade que não se confunde com as demais. Osmar sempre pareceu temeroso em deixar uma marca pessoal, que outros pudessem julgar como tentativa de sobrepor-se ao autor. Em A Falecida, há absoluta fidelidade ao espírito de Nelson Rodrigues e ao mesmo tempo o espetáculo flui com uma liberdade que é do diretor. Não se falseia uma intenção da obra e há uma linguagem autônoma do palco, inclusive na cena final, em que se fecha a cortina e Tuninho chora, diante dela, enquanto estão projetadas no pano as imagens do enterro de Zulmira. Um efeito do desfecho de Vestido de Noiva se reproduz aqui, sem tornar-se um pálido reflexo, mas encontrando, em termos semelhantes, o universo do dramaturgo. Sente-se, na montagem, o carinho compreensivo do encenador e sua identificação com o texto.

    Osmar conseguiu do elenco um eficaz equilíbrio. Há os desempenhos privilegiados, quer pelo acerto do interprete, quer pela oportunidade oferecida pela personagem, e há alguns em que o rendimento não foi total. O conjunto ameniza as diferenças e vale pelas atuações mais fortes, que carregam o espetáculo.

    Nize Silva tem o seu melhor trabalho em Zulmira. Ela funde as idéias de frustração, de misticismo, de terror em face do desconhecido e de inexorável fatalidade. A Falecida é uma das personagens que definem com maior clareza o universo feminino de Nelson Rodrigues e Nize Silva a encarna sem deixar de lado um componente. A boa e poderosa voz vai se dosando aos poucos com os acessos de tosse, até o desenlace. Nize correspondeu plenamente à responsabilidade que lhe foi atribuída.

    Uma composição magnífica é a de Luiz Carlos de Moraes Pimentel. Poucas aparições foram suficientes para desenhar com absoluta nitidez o perfil do bicheiro vitorioso. Outra criação feliz deve ser creditada a Elias Gleizer: embora não espontaneamente indicado para o papel de Timbira, que é um típico malandro carioca, ele obtém a cada momento um efeito seguro sobre a platéia. Luiz Parreiras, hoje um dos mais sólidos atores jovens de São Paulo, faz com muita competência o papel de Tuninho, sem dar-lhe, entretanto, aquele ar de “desempregado” do Rio. Já Luiz Modesto não perde uma inflexão como o chauffeur. Todo o elenco dosa bem a atmosfera da tragédia, que só se enriquece com as sucessivas tiradas de humor.

    A excessiva economia do diálogo rodriguiano poderia não dar tempo para que o clima se adensasse e as personagens adquirissem consistência cênica. Quando o espetáculo não é bem feito, essas características surgem como falhas e prejudicam a imagem do autor. A Falecida, na atual versão, ressalta a extraordinária teatralidade de Nelson Rodrigues.

    O Teatro Popular do Sesi mostrou, em primeiro lugar, um painel histórico da dramaturgia brasileira, e se volta agora para a produção contemporânea. Não houve propósito deliberadamente didático, mas um profundo amor pelo teatro nacional, de que aliás, Osmar Cruz é um dos poucos e reais conhecedores. A nova fase do TPS cria obrigações sérias com a coletividade, a que a escolha de um repertório bom e conseqüente deve responder, depois do acerto dos nomes de Plínio Marcos e Nelson Rodrigues.

    SÁBATO MAGALDI

    A FALECIDA
    (1979)