LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA
(1973)

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  • DEPOIMENTOS (2/4)
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    Programa do espetáculo
    Composição gráfica de autoria desconhecida

    © Flávio Império

    Walmor,

    da nossa vontade de caminhar juntos surgiram dois trabalhos nesses três anos de vivência-cada-um-na-sua. O primeiro experimental, meio tímido, fechado, junto com um grupo grande atores e psicólogos, examinando técnicas e métodos psico-dramáticos e improvisação coletiva, fora de injunções comerciais e culturais. Amadoristicamente nos entregamos à busca de uma linguagem direta no “teatro da vida”, suas máscaras, suas tensões mais íntimas. Agora este espetáculo-teatro-brinquedo, dentro do universo profissional e da linguagem “clássica”, texto, som, imagem, efeitos de caixa mágica. Os dois trabalhos seguiram as orientações predominantes em cada um de nós com o radicalismo da nossa habitual disponibilidade: o novo, o desconhecido, o aparentementeanárquico; e o velho, o conhecido, o aparentemente “clássico”. Ambos quase irrealizáveis de tão absurdos dentro do contexto limitado das nossas disponibilidades técnicas e humanas que encontramos. Ambos muito sedutores e divertidos, alimentados com um otimismo sem outro objetivo que o de se sentir muito vivo entre os vivos. O pavor pelo desconhecido foi o primeiro e o grande obstáculo que encontramos para transpor no primeiro trabalho. O ser desconhecido que existe em cada um de nós, aos primeiros sintomas de vida, aos primeiros movimentos de seu despertar, revela nossas entranhas míticas, fazem saltar todos os demônios e anjos em meio a um labirinto sombrio e assustador que desprega uma a uma as nossas máscaras de comportamento habitual para revelar um ser mais profundo por trás delas, que suspeitamos suspeitado mas reprimido, que nos poucos se integra no ser já conhecido, dando origem a um novo e insuspeitado estado de ser, sentir e sacar.

    Esse despertar lento e penoso revela verrdades interiores, cujo confronto com os preconceitos e com o medo de vida corrente cria muitas vezes barreiras quase intransponíveis.

    Nossa expriência grupal, cuja improvisação e teatralização partia de circunstâncias emergenciais e não proposta, chegou a um impasse que era do âmago da questão em questão: pode um trabalho que exige uma entrega existêncial conviver em paralelo com a vida comum? Um trabalho consigo mesmo e coletivo pode se restringir à habitual compartimentação de trabalho e vida?

    Era evidente, desde o começo, que não.

    Onde pára a vida para começar a arte? Só quem não cria é que pode estabelecer limites. Para o artista o que chamam de arte não é senão parcela íntima e em geral muito insatisfatória da sua existência “artística”.

    Sendo o artista um aparelho de percepção e projeção, o objeto arte não está inteiro no que consegue fazer porque está totalmente dissolvido no seu ser sempre.

    Paramos para não ver decomposta a expectativa de mudança que cada um tinha dentro de si.

    Paramos para não obrigar a soluções impostas em estado de tensão grupal, cuja decisão, fosse qual fosse, agiria de forma autoritária sobre o conjunto.

    E cada um de nós retomou sua vida procurando sua verdade mais íntima numa relação diferente da dos outros, procurando resolver de acordo com suas possibilidades essa divisão esquizofrênica essencial, integrados, inevitavelmente, em nosso mundo social.

    A experiência amadora permaneceu intacta, em estado puro e nos deu uma noção nítida e clara de que um novo teatro surgirá, inclusive do que já existe: o novo dentro do velho, imerso, perdido em meio às trevas do presente, nítido pra quem intui o futuro.

    O impraticável desse segundo trabalho vem de coisas mais práticas, do difícil contacto com a mecânica do teatro profissional. Imerso no mundo dos negócios, a infra-estrutura do teatro atual perdeu sua autonomia semi-amadora do Arena, Oficina, dos trabalhos de Maria Esther e José Agripino, apontando aqui e ali sem saída, nem futuro, em esforços isolados, que se perdem no Lixo do Luxo das produções importadas e caras que assolaram o País. Resta a cara e a coragem da nossa mãe-baleia Ruth (que amo), que nasceu sabendo navegar, pois viver não é preciso...

    De passagem pelo teatro profissional, reencontrei verdadeiros mestres da técnica clássica do Teatro que floresceu com o T.B.C. Arquimedes, Atílio, Giancarlo, são os técmicos que respondem diante do sistema industrial que hoje cerca o mundo do espetáculo (Fenit, TV etc.) não como engenheiros (que nos faltam), mas como técnicos de nível médio especializado. Têm o conhecimento empírico das possibilidades técnicas dos materiais convencionais de construção cênica: maquinaria e iluminação.

    Tudo em torno do Teatro Cacilda Becker era muito velho. Tive por um momento a sensação de ter de ressucitar Lázaros para fazer um espetáculo inteiramente dentro dos parâmetros convencionais. Só que pra valer.

    O trabalho de “limpeza” começou pela retirada do palco-janela e da ampliação do espaço cênico, pela pintura e recuperação do espaço arquitetônico. Aos poucos, começamos a nos sentir mais em casa.

    Escrevo este texto em meio a quilômetros de fios e traves de madeira. Já está tudo branco e a estrela já brilha na rampa. Ainda não soou o Aleluia. A ressurreição se processa lenta e morosa. Eu e você, Walmor, nos entregamos como pela última vez. Depois não existirá nada.

    Você só sabe que vai se desfazer do seu teatro. Eu não tenho nada de que me desfazer...

    Neste espetáculo, cercamo-nos de gente amiga e positiva, de grande força espiritual. Isso nos anima a chegar até você, que me lê, num dia qualquer. Temos a esperança íntima de que haverá a comunhão a que nos propomos no LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA.

    A presença ausente de Cacilda Becker e André Gouveia me levaram através de mim mesmo a trabalhar. A eles dedico tudo que fiz, e a todos que mais amo e com os quais convivo: minha mãe, a família de minha irmã, meus companheiros de casa e cotidiano, Tatiana e Julio Gouveia, Maria Thereza Vargas, Djalma Batista, Vivian – agora Heart Smile, Fauzi Arap e Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gal, Zé Celso, Renato, Ítala, Boal, Guarnieri, Ruth Escobar, Raul Cortez, Paulo Herculano, Tadeu, Nenê Anunciação, Dudu, Walter, Nilsa, Krishna, Sutra.

    Walmor, é este o quadro que te prometi. Não quis pintar tua imagem, mas moldar teu inconsciente na tua própria linguagem.

    Ele é teu, como todo o meu amor.

    FLÁVIO IMPÉRIO

    LABIRINTO: BALANÇO DA VIDA
    (1973)