Labirinto: balanço da vida começou assim : Flávio, vou fazer um espetáculo de poemas. E então respondi: Ai que chato, Walmor! Mais um?!!! Talvez eu consiga fazer alguma coisa que não fosse "tão chata - Walmor, mais um". E aí começou. A gente tinha um nível de convivência de muita intimidade naquele tempo. Coincidentemente andávamos fazendo muitas viagens juntos nessa época, meio de férias ou feriados, o que não era comum nem para mim nem para ele. Foi ficando uma convivência muito verdadeira porque estava em cima do cotidiano e seus acidentes. Nessas idas e vindas, cada vez que acontecia uma parada na estrada, tinha uma aurora que me lembrava alguma coisa, ou uma música popular, ou não sei o quê. Um certo brilho que podia ser aproveitado no espetáculo. Como era no ato mesmo da convivência ele captava a essência com facilidade. Os incidentes e acidentes que acontecem em torno de um trabalho, quando há uma grande comunhão entre as pessoas que o fazem, são muito informativos. É incrível, um crepúsculo que de repente, atravessa a vida das pessoas que estão trabalhando juntas, entra para o espetáculo de mil maneiras: como cor ou como clima, por exemplo, e informa. Este espetáculo foi muito inspirado no próprio Walmor também. A Maria Thereza Vargas teve uma participação muito importante. Em cima do primeiro roteiro, feito pelo Paulo Hecker, a gente conseguiu juntar certa experiência de nossa convivência, com algo do Rosa dos Ventos, espetáculo de Maria Bethânia, dirigido por Fauzi Arap, que eu tinha acabado de fazer os cenários e figurinos. O que eu havia vislumbrado, mas não tinha conseguido fazer no show, afinal não era minha a concepção geral, levei para o Labirinto. Peguei exatamente a mesma estrutura, as quatro partes e multipliquei o sentido projetando em cima das quatro estações. Estava dizendo que, apesar das várias partes de que o homem é composto, talvez a mais importante fosse a vontade, porque de todas elas, é a que é mais livre. E aí ficou um slogan que eu já tinha usado muito antes em um desenho. Levei um mês desenhando um homem. era um desenho muito grande. Minha mãe me havia mostrado, um dia, uma frase de um livro: "...tens algo dos anjos, tens algo do fogo, tens algo ... etc ... etc ... e tens a vontade e ela é livre". Era uma frase atribuída a um santo anônimo do século XVI, se não me engano. Usei essa frase no desenho e no espetáculo, como um mote. Acho o Walmor um ator incrível. Ele pegou sua geração no final, percebeu como era a geração mais nova e ficou com todos os sabores. Ambas as gerações tem o mesmo atavismo: nenhuma usa o corpo a não ser como pedestal para a cabeça, ombros, braços e mãos. É duro, porque o resto é a roupa (que se fazia, muito bem feita, no Teatro Brasileiro de Comédia) A geração do Teatro de Arena tem o gesto mais espontâneo, e então você não pode dizer que é pedestal, mas é uma espécie de máscara das convenções do gesto usual, habitual. O que aliás não deixa de ser um pedestal para as várias máscaras habituais. A dança leva isso ao extremo. O que a linguagem do gesto permite, porque ela destrói a razão utilitária do gesto e reconstrói só a dinâmica do gesto em todas as expressões. Nos ensaios eu fazia exercícios que chamei de "exercícios do nada". Ensaiávamos no Teatro Leopoldo Fróes, um teatro da prefeitura, na rua General Jardim. O teatro estava vazio de cadeiras, de tudo (logo depois seria demolido). "Fale este texto correndo do palco até aquela porta, numa espécie de vôo livre, como se fosse um planador que estivesse aterrissando, ou seja, uma aterrissagem sem choque." O planador não tem motor. Ele vai chegando com o vento e aterrissa. Porque ele tem uma espécie de autonomia.

FLÁVIO IMPÉRIO