Flávio Império - DO BEXIGA A LIBERDADE
"nasci no Bexiga e lá me criaram... essas fotos aqui reproduzidas são pedaçøs, formados de muitas telas e completados por todas as que não foram pintadas, por preguiça, desgosto, cansaço e resfriados."
Conheci Flávio no teatro de Arena. Para mim, embora soubesse um arquiteto, era um homem de teatro, silencioso e pé de boi, trabalhando muito e sempre, ao lado de Boal e mais tarde ao lado de Zé Celso, no teatro Oficina. Ele sempre esteve presente nos espetáculos mais expressivos do teatro paulista e brasileiro da última década, seus cenários sempre foram uma co-autoria, e sempre foi premiadíssimo por tudo o que fez. Dirigiu um dos espetáculos mais belos que vi em minha vida, "Os fuzis", de Brecht, com o T.U.S.P., teatro da universidade de São Paulo. Além de cenógrafo e diretor de teatro, é arquiteto, pintor, professor. É ou foi, me pergunto? A pergunta se explica porque mais recentemente Flávio escolheu... ser anônimo. Para ele mesmo, para seu equilíbrio, escolheu começar tudo de novo. E é muito difícil ele conseguir não ser o seu passado, por as pessoas continuam afirmando que ele é Flávio Império. Mas ele não quer.
- Está bem, eu aceito, mas não quero meu nome na porta.
- Mas é importante, você vende, Flávio, você é conhecido...
- Mas eu não quero.
Semana passada esteve por dois dias no teatro Igreja, ao lado de Lilia Costa, Renato Dobal, Heart Smile e a família Maberti, numa exposição auto intitulada "Os alegres pintores do Bexiga". E "os alegres pintores" estarão, para que não viu, no teatro Célia Helena, na Liberdade, prometendo algumas novas atrações, todo um material cenográfico que Flávio tem guardado e que resolveu mostrar também, por apenas mais dois dias, segunda vinte e oito, e terça, vinte e nove.
1- Charme
No Oficina, no Arena, sempre foi muito amado. Por todos. E sempre falou mal de tudo que fez (mesmo premiadíssimo). Isso virou um cacoete, um charme. Uma vez acusei isso nele: - "Você está acostumado a chegar e dizer com um sorriso encantador - é uma m..., e as pessoas caírem de joelhos, mas alguns não estão acostumados e outros não entendem. Tome cuidado".
Uma matéria escandalosa saiu há alguns anos no jornal da cidade se aproveitando da maneira de ser do Flávio, maneira que seus amigos conhecem muito bem e que só pode provocar escândalo em quem não o conhece, em quem somente o curte a distância. O repórter mente muitas vezes, sem querer, quando conta a verdade. Flávio ficou chocado. Não duvido que Flávio diga ao próprio Paulo José, "você é um rei da televisão", mas quando o diz, isso inclui também um subliminar - eu te amo - onde ficou nosso passado comum? As palavras são o corpo de alguma coisa invisível que é mais importante que elas. Paulo e Flávio são grandes amigos.
2- Amigos
Miriam Muniz, Vivien Mahr (Heart Smile) Mamberti, Zé Fernandes - o ator, Seme Ltfi, eu mesmo, sua irmã, seus sobrinhos, e muitos outros amigos seus, são pesoas que retratou nos últimos anos.
"... rostos, caras, carapaças, cascas, máscaras, que passaram por mim e sorriam, que passaram por mim e me olharam...", como ele diz em sua "autobiografia", na última página do álbum que lançou junto com a exposição. A pintura de Flávio é alquímica. É fácil perceber como Flávio se projeta muitas vezes no outro, o desenho revelando a sua própria presença como um fantasma, como um reflexo. Ele percebe isso.
- "Fauzi, eu ando incrível... Se estou caminhando pela rua numa direção e encontro alguém que me diz, me convida para caminhar na direção oposta, eu vou e muitas vezes me surpreendo algum tempo depois num lugar estranhíssimo, sem saber como fui parar lá..."
Isso ele me disse há algum tempo atrás, no começo do ano, agora me lembro. E a pintura é um jeito de Flávio se referir e se redescobrir, distinto do outro, mas revelando por outro lado essa tentação e essa vocação de se confundir com o outro.
3 - Cenografia e conflito.
Através de sua pintura pode ser absoluto. E sempre que é cenógrafo de uma peça (aliás, odeia a palavra - cenógrafo -, e inventa outras: espaço cênico, visual etc. etc.) sofre com a limitação natural que a função determina. Adora conviver com as pessoas, adora as pessoas, mas sofre por não poder expressar livremente tudo o que lhe ocorre. As limitações econômicas, a concepção do espetáculo, tudo isso ele chega a odiar, em vésperas de estreia, pois seu potencial criativo é inesgotável, as vezes falto o equilíbrio. Que talvez a aceitação do nome na porta, lhe desse. Ou a aceleração da coisa econômica, do dinheiro.
4 - Economia
"De hoje em diante, eu só trabalho com percentagem da bilheteria..."Começa a confusão. Na verdade, para mim, o grande sofrimento de Flávio quando faz teatro é impossibilidade de realizar inteiramente o que lhe dita a inspiração, é não poder ser absoluto como quando pinta, como quando está só. E trabalhando esquece dinheiro, tudo, é capaz de gastar seu próprio dinheiro para realizar as coisas, e não consegue um comportamento profissional. Walmor chega do Rio. Para convida-lo para uma direção. Na sala, um quadro belíssimo - "É meu. Quanto você quer?". E Walmor faz um cheque. Flávio: - "Ótimo, agora não vou aceitar mesmo a direção". E Walmor sorri. A relação de Flávio com o teatro sempre foi um pouco conflituada. Walmor sabe. Assim é a relação do Flávio com seus amigos.
Flávio não sabe discutir dinheiro, não sabe vender, não sabe se vender. Tenta manter a coisa econômica no limite do necessário.
"Faço agora a exposição, e vou ao Nordeste". Não existe nele a preocupação "normal" com o futuro, com a segurança. Há um ano, mais ou menos, abandonou seu emprego de professor da Faculdade de Arquitetura da USP, seu último vínculo com o passado, com a antiga identidade.
5 - O ator
- "Eu disse pro Zé Celso, porque é que eu não posso fazer o Galileu? E ele riu, não levou a sério..."
De vez em quando combinamos um espetáculo que eu dirigirei algum dia, com ele. Um Godot em nossas vidas.
6 - A mudança: Julien Beck
Julien Beck foi uma pessoa fundamental na virada de cento e oitenta graus que deu sua vida, de setenta pra cá. O "Living Theatre" veio ao Brasil, por volta de outubro de setenta. E para que não sabe, é um grupo respeitadíssimo lá fora, e foi convidado por Zé Celso do Oficina, para vir até o Brasil para que fosse feito um trabalho comum. As tais criações coletivas. As pessoas do Living vivem comunitariamente, são vegetarianas e até foram presas aqui no Brasil, sob a acusação de porte de drogas. O comportamento deles, desde a forma de se vestir até a forma de convivência, não obedece a padrões comuns. Julien Beck é o líder masculino do grupo, e é um senhor jovem, se é que me explico, ele não tem cabelos em toda a parte frontal da cabeça, e usa cabelos longos e brancos na parte em que tem cabelo. Uma figura. Durante o período em que o Living esteve aqui, Flávio teve uma série de experiências paranormais.