MATRIZES, FILIAIS & COMPANHIAS
(1979)

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  • CATÁLOGO (27/51)
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    Fauzi Arap
    Catálogo da exposição, 1979
    Impresso sobre papel

    Acervo Flávio Império

    Um dia, de madrigada, estava saindo do apartamento de Zé Celso, acompanhado por um ator do Oficina, quando uma mulher pediu socorro, ela estava em prantos pois seu mairo estava morrendo, parecia. Flávio, que é surpreendemente intuitivo, de grande força mediúnica, mesmo, acudiu a mulher e o homem, que estrebuchava, foi totlamente acalmado pela presença de Flávio. Alguns exercícios "energéticos"do Living tinham despertado em Flávio a consciência de um "poder", de alguma coisa viva e invisível, que é própria do ser humano e que na época Flávio teve o despudor de descobrir em si, contra todo seu racionalismo de até então. Flávio é um tanque de energia.

    Flávio não sabe como acudiu ao chamado da mulher, pois sabemos todos que não é comum nem normal, hoje em dia, atendermos ao grito de socorro de ninguém. Louco, não? E o engraçado da histéoria é que dias depois, alguém encontrou com a mulher que contou que o marido quando teve uma nova crise (era um homem doente) perguntou pelo "homem": - "cadê o homem?", chame o homem"... Flávio, um super-herói? Julien Beck despertou o super-herói? Julien Beck despertou o super-herói energético de Flávio Império. E foi um susto. Uma piração. Onde ia parar o Flávio racional, respeitadíssimo pelas maiores cabeças da cidade? Julien encarnou para Flávio a figura de um guru-pai-Deus e diabo ao mesmo tempo. 

    Depois que o Living partiu, Flávio ficou um longo tempo convalescendo da experiência  toda que contou com muitos episódios e situações assustadoras e surpreendentes. Fez ioga, tornou-se vegetariano, estudou muita coisa e amordaçou e sufocou o super-herói. A busca de simplicidade, a mais simples, o convívio com o povo mesmo, com o que fosse de mais primitico, foi uma forma de restaurar seu equilíbrio, pois o mundo não está para super-heróis. Hoje em dia, matam. Ou sempre foi assim?

    7 - Bexiga

    "- Eu sou o Bexiga, Fauzi, eu nasci aqui. E eu descobri que a Vivien pinta, então eu convidei o Serginho, e os filhos deles também, porque  todo mundo pinta. Então, é uma família de bairro. Aqui, quando eu saio na rua, é como se eu conhecesse todo mundo, o Bexiga, apesar de todas as reformas, é um bairro protegido, tem alguma coisa que não mudou".

    Atualmente mora na São Domingos, com uns amigos, numa vila. Ele me mostra seu quarto. (Flávio muda muito de casa não sabe dizer não às pessoas. Então quando a barra pesa muito e se encolve demais com as pessoas e elas não lhe dão sossego, ele desaparece, some, e reaparece depois morando em algum outro lugar, que aos poucos as pessoas vão descobrindo de novo, e assim por diante). 

    - "Tá vendo o meu quarto? Ali moram uns favelados (o quarto é um pouco devassado e ele me explica as cortinas que há). E de vez em quando eu danço. Pintando, eu paro e danço. Eles não entendem nada, eles devem imaginar que eu sou louco, mas essa cortina aqui e essa aqui, quando eu quero, eu fecho. Tá vendo, eu posso enxergar eles, e eles não me enxergam..."

    Na verdade eu, Fauzi, não contei direito. Existem duas cortinas: uma para os favelados e outra para umas fofoqueiras que moram de fronte. A cortina das fofoqueiras é que é transparente e que dá para ele vê-las e elas não.

    8 - Conflitos do repórter amigo

    Que direito tenho eu de devassar a intimidade de Flávio Império?

    Além das cortinas que colocou? Subitamente me pergunto se não estou sendo indiscreto. Mas me ocorre que certas pessoas não se pertencem. Flávio é uma delas, porque são maiores que sua vida pessoal. Não quer acabar com a identidade secreta  Clark Kent de Flávio Império; mas preciso falar do super-herói.

    Ele diz sorrindo para Bicoa, divulgadora do Amor do Não:

    - Ele é quem tem mania de ser meu pai.

    Ele, sou eu, Fauzi Arap, autor e com algumas manias inofensivas;

    Subitamente o silêncio.

    O que contar ainda? Penso em falar de Loira, Abelardo, Quim, Marcia, os nomes que escapam, todas as pessoas que são importantes para ele, mas me ocorre que jornalisticamente os nomes destas pessoas que o público não conhece pode não interessar. Mas elas são as mais importantes, tenho certeza, ele as escolheu. São muitas mesmo, além de sua irmã, de sua mãe, sua família.

    Lembro de Maria Tereza Vargas, com quem trabalhava numa favela, por volta de sessenta, e de Cacilda Becker, que foi responsável por sua estréia profissional em teatro na primeira montagem de Vida e Morte Severina. 

    Fico tentado a deixar fechada a cortina transparente e frágil de seu quarto, ou a que ele inventava, quando menino brincando de teatro, com pregadores e varal e que ele copiou para o cenário de Pano de Boca. Mas "The show must go on..."Apesar do menino que enxerga a nudez do rei mas não diz. 

    9 - Um pintor no exílio

    - "Este aqui é meu quadro político". E me mostra um rosto, dois olhos esbugalhados e perplexos, e passivos perante o que vêem. Um trabalhador. 

    - "Ele está vendo uma passeata de estudantes...", eu pintei durante estas últimas passeatas..."

    E me ocorre a idéia de um Flávio exilado, asilado no anonimato. 

    - "Sinto falta do Boal, ele me impulsionava, ele fazia acontecer as coisas..."

    - "Zé Celso, você não sente falta dele?"

    Nos velhos tempos o "povo"era uma idéia. Flávio quis de si, o povo, quis de si, um morador anônimo do Bexiga, mas será possível tal abstração de si mesmo? a sua simplicidade será falsa, por ser uma simplicidade escolhida? Uma simplicidade ao quadrado, será definitiva? Flávio não é inocente nem será nunca mais, embora muitas vezes involuntariamente confunda os dois níveis. 

    Ele busca a graça. Iluminação que toca na arte, na pintura, na vida também. Mas as sua simplicidade escolhida e descoberta não é idêntica ao do seu vizinho, dos seus companheiros, moradores do Bexiga. Ou será que estou enganado?"- "Quando eu mudar, a Das Dores vem comigo."(Das Dores é a cozinheira).

    10 - O fim dos tempos

    Somos super heróis fracassados. Que descobriram no fracasso, uma porta. 

    Como as semesntes, que morrem para crescer e florescer. Quem sabe devemos mesmo fracassar e morrer para cumprirmos nossa sina?

    No tarot, existe uma carta que mosta um sábio que oculta a luz que conduz para não ofuscar os olhos de quem não está preparado, a vista comum dos mortais. 

    Flávio me parece alguem que tomou tal imagem ao pé da letra e tenta realizar com sua vida a lição. Embora em seus quadros tente revelar ao máximo a tal luz. A questão fundamental não é a nudez do rei, não é? Qual é, então? Será invisível, será o invisível?

    FAUZI ARAP

    MATRIZES, FILIAIS & COMPANHIAS
    (1979)