ANDORRA
(1964)

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  • REPERCUSSÃO (3/5)
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    Martin Gonçalves
    O Globo
    6 de outubro de 1966

    Acervo Flávio Império

    © Martin Gonçalves

    De um poema de Bertolt Brecht
    É necessário apenas perguntar:
    “Aquele homem é uma desgraça para nós?”
    “Então é um judeu!”
    Uma desgraça se reconhece pelo fato de que nos ofende.
    Não por seu nariz.
    Não são os narizes, mas, sim, as ações, que são as desgraças.
    Nenhum nariz particular é necessário para roubar
    o povo.
    Basta apenas ser
    um nariz do regime.
    Todo mundo sabe que o regime
    é uma desgraça para o povo.
    E já que todas as desgraças são produzidas
    pelos judeus,
    o regime deve ser,
    logicamente,
    um produtos dos judeus!

    -       Isso é absolutamente evidente!...

    “Nossa sentença não é severa. Nós simplesmente gravamos, com o auxílio de um ferro em brasa, o texto do parágrafo violado na pele do culpado.”
    Franz Kafta (A Colônia Penitenciária).

    O JUDEU ANDORRANO
    (Do “Diário” de Max Frisch – 1946; esta crônica serviu de embrião à peça Andorra, escrita em 1958/61)
    Tradução de F. Peixoto

    Em Andorra vivia um rapaz que era tido por judeu. É preciso contar aqui a suporta história de sua origem, suas relações cotidianas com os andorranos, que viam nele o judeu: imagem que o esperava em toda parte. Por exemplo, a desconfiança dos andorranos em relação aos seus sentimentos, pois um judeu, e isso os andorranos sabiam muito bem, é incapaz de ter sentimentos. Por outro lado faziam com que ele acentuasse a acuidade de seu intelecto que, graças a isso, se desenvolvia cada vez mais. Ou então sua atitude em relação ao dinheiro que, também em Andorra, representava um grande papel: ele sabia, ele sentia, o que todos pensavam em silêncio; ele se observava para saber se era verdade que ele vivia pensando em dinheiro, ele se examinava  tanto e tantas vezes que acabou por  descobrir que isso era mesmo verdade, que ele só vivia mesmo pensando em dinheiro. Ele reconheceu isso e não procurou esconder. E os andorranos se olhavam sem uma palavra, sem comentar. E a respeito da pátria, ele sabia perfeitamente o que eles pensavam: cada vez que essa palavra vinha nos seus lábios, eles o abandonavam omo se ele fosse uma moeda caída na lama. Pois o judeu, isso também os andorranos saviam muito bem, o judeu tem as pátrias que ele escolhe, que ele compra, não uma pátria como nós, uma pátria que nos foi legada pelo nascimento. E apesar de sua boa-vontade a respeito de problamas andorranos, suas palavras caíam sempre no vazio. Mais tarde, ele compreendeu que não tinha tato. Aliás, um dia isso lhe foi mesmo dito claramente, quando, desencorajado pela atitude dos outros, ele se tinha deixado levar pela paixão. A pátria pertencia aos outros, de uma vez por todas, e não se esperava que ele pudesse amá-la. Ao contrário, todos os seus esforços obstinados e as suas insistências só acabavam por criar um abismo de suspeitas: se ele mendigava um favor, uma vantagem, uma simpatia, aquilo não podia ser movido senão por interesse, ainda que ninguém pudesse precisar qual seria este interesse. Tudo ia assim até o dia em que sua inteligência trepidante, que tudo dissecava, descobriu que realmente ele não amava a pátria: a simples palavra pátria lhe inspirava aversão, produzia nele um calafrio toda vez que ele a pronunciava. Parecia que eles tinham mesmo razão. parecia que ele era absolutamente incapaz de amar, pelo menos no sentido andorrano da palavra. Ele tinha o foto da paixão, sim: e com isso uma inteligência fria, um raciocíonio em que se julgava oculta, sempre, uma arma secreta, sempre pronta a servir a sua sede de vingança. O que lhe fazia mal era o aspecto emotivo, este lado envolvente e também, sem dúvida, este calor humano que inspira confiança. Frequentá-lo era estimulante, sim, mas não era agradável, não era cômodo. Ele não chegava a ser como todos os outros, e depois de ter tentado em vão passar despercebido ele mesmo começou a enfatizar a sua maneira de ser diferente, como uma espécie de desafio, de orgulho, de agressividade, mas, pouco à vontade nesta atitude, ele adoçava com uma polidez de negócio. Até na sua maneira de saudar, de se inclinar, havia uma espécie de censura, como se fosse culpa de seu meio ele ser judeu...

    A maior parte dos andorranos não lhe queriam mal. Nem bem.

    Por outro lado, havia também andorranos de espírito mais livre, mais progressista, como eles mesmos diziam, moralmente comprometidos com certo humanismo; eles estimam o judeu, pela perspicácia de seu raciocínio, assim por diantes. Estes tomaram seu partido até sua morte, que foi cruel. Cruel e sórdida, ao ponto de até mesmo aqueles andorranos, a quem a crueldade da vida ainda não tinha atingido, ficaram horrorizados. Para falar a verdade, eles não choraram ele, ou melhor, falando francamente, eles não lamentaram ele – eles se indignaram, simplesmente, contra os que o tinham assassinado e contra a maneira como aquilo tudo se passou. Principalmente contra a maneira.

    Falou-se disso por muito tempo.

    Até o dia em que foi revelado o que ele mesmo, o morto, não tinha podido saber: que ele tinha sido achado criança, os pais tinham sido descobertos mais tarde: um andorrano como todos os outros.

    Não se falou mais disso.

    Quando aos andorranos, cada vez que eles se olham no espelho, eles encontram com horros os traços de Judas, todos, sem exceção.

    MARTIM GONÇALVES

    ANDORRA
    (1964)