TEATRO UNIVERSITÁRIO DE SÃO PAULO – BRASIL
Os fuzis da Senhora Carrar
Num teatro político, a forma teatral de cada cena ou a relação do espetáculo com seu público não pode se dar somente na esfera da política. A direção de A Exceção e a Regra, por exemplo, foi precedida por uma discussão política, na qual se concluiu que o operário das industrias de São Paulo era, em 1966/67, o setor da população mais efervescente , assim como o mais receptivo às questões de caráter político e que o tema da divisão da sociedade em duas classes antagonistas era, naturalmente, a mais próxima de seu cotidiano. Estando definidos esses dois parâmetros - o público e a questão a se discutir com ele – o terceiro parâmetro – a linguagem teatral compreensível – vai se definir e se desenhar no contato direto do espetáculo com seu público.
Em 1968 , foram eleitos como público o setor politicamente mais efervescente da sociedade da cidade de São Paulo, o dos estudantes. Na verdade, dentre os 40.000 universitários e os 300.000 estudantes do ensino fundamental, somente uma pequena parte é verdadeiramente ativa. A maior manifestação de rua na cidade, por exemplo, contou com 11.000 participantes (nem todos estudantes). Os temas de nosso espetáculo aparece aí: a neutralidade (subjetiva ou objetiva) e a violência (dos estudantes politicamente ativos em 1968, só uma minoria seria capaz de afirmar que a luta armada é a única maneira de se acessar ao poder para as classes oprimidas).
A linguagem do espetáculo não tem necessidade de se limitar para ser compreensível se consideramos que o público é formado por estudantes. Ninguém pode ser mais integrado na sociedade de consumo, na “aldeia global” como um estudante: ele fala todas as linguagens, decodifica todas as imagens, por um processo semi consciente. Ele vê e compreende mesmo quando não se dá conta de que viu e compreendeu. O universo cultural de um estudante de São Paulo é bastante semelhante àquele de um estudante da França, desde que os dois participem da sociedade de consumo que é uma só, sendo a única diferença que a nossa sociedade de consumo está inserida numa economia subdesenvolvida. Nos Os fuzis de Dona Tereza foram utilizados livremente todos os recursos da linguagem teatral disponíveis tendo como único critério a significação clara de cada situação.
Nosso espetáculo tem como ponto de partida um texto ruim, Os Fuzis da Senhora Carrar (de Bertolt Brecht) - linear , acadêmico, cansativo, “dramático”, fechado em si mesmo. Esse texto foi utilizado somente como argumento sobre o qual construímos um roteiro. Ele foi aumentado, diversificado, explodido. No nosso espetáculo, o público participa e tem o seu papel; senhora Carrar é somente uma personificação desse público, o qual nós assumimos como “neutralista”, ela é a concretização da sua ideologia, ou pelo menos de seu comportamento objetivo, ela deve então ser violentamente enfática, assim como os outros personagens que, no texto original , são “negativos”, sobretudo o Padre, personificação de todo o fetichismo pequeno burguês. A discussão que se trava entre o Padre e o irmão operário da senhora Carrar, cerne “não-dramático” do texto original, dá-se, em nosso espetáculo entre o operário e o público. O operário questiona não mais a segurança da senhora Carrar, mas a segurança do público mesmo, em um regime de opressão, e o público responde (ou se cala) pela voz do Padre.
Após essa cena, a Senhora Carrar se multiplica em dez senhoras Carrar que se espalham por entre o público, dirigindo-se diretamente aos espectadores, não para os injuriar como o faz o operário, mas para exigir a solidariedade neutralista que o público, por seu comportamento objetivo, lhe deve.
O filho da Senhora Carrar morreu enquanto pescava, não se trata apenas de mais um pescador da Andaluzia, mas sim de alguém que pode estar muito próximo de qualquer um de nós. Poderia ser por exemplo, o Edson Luis Solto, estudante brasileiro cujo assassinato, ocorrido no incidente carioca de 1968, é citado nesse momento da peça como o primeiro caso de morte provocado pela repressão no Brasil.
Quando a Senhora Carrar decide ir ao front todo o fluxo enfático é violentamente e definitivamente rompido: ela vai só e recusa ao público a catarse final do bom teatro de esquerda. O público é obrigado a ficar imóvel em seu lugar, assistindo a um grande cerimonial audiovisual que celebra a vitória do fascismo sobre as forças da desordem e da subversão. Ele não pode nem mesmo aplaudir porque não sabe quando o espetáculo termina. A história do napalm, gravação que, durante 15 minutos, dominou o início do espetáculo (colocando em oposição , ao mesmo tempo e brutalmente, o subdesenvolvimento monótono representado em cena e as técnicas de repressão super desenvolvidas contadas através da gravação sonora) recomeça, e agente a escuta até que o último espectador saia em silêncio.
YAN MICHALSKI