CRÍTICA DA REPRESENTAÇÃO de FUZIS
O espetáculo dirigido por Flávio Império é, do primeiro ao último minuto, como um ritual. Não um ritual primitivo, mas uma liturgia solene e elaborada, fundeada sobre um constante e trabalhado crescendo de ritmo, de densidade e de aparatos, através do qual o espectador é arrancado, pouco a pouco, de sua autoconsciência individual e levado, irresistivelmente, a um estado de comunhão místico-artístico-político com a celebração dos intérpretes. A lentidão provocadora e a monotonia da primeira parte do espetáculo são propositais: é uma introdução necessária para, por um lado mergulhar o espectador numa atmosfera litúrgica e por outro para liberar através de sua irritação, seu potencial de participação emocional que será violentamente solicitada no instante seguinte.
Mas se a direção, como ritual digno desse nome, domina o espectador obrigando-o a uma adesão emocional incondicional, Flávio Império sabe romper, quando necessário, a magia dessa entrega a fim de dar igualmente à sua realização o indispensável esclarecimento didático. Paralelamente à excitação emocional nos submetem seca e friamente a um vasto material de estudo que nos obriga a assimilar intelectualmente o sentido daquilo que o espetáculo se propõe a nos mostrar: uma exposição científica sobre as propriedades do Napalm, uma pequena conferência sobre as origens da guerra civil espanhola, imagens e gravações autênticas da época. O envolvimento catártico e o distanciamento épico se sucedem alternadamente, e o espectador sai do teatro com a sensação de ter participado de uma experiência emocional que ele não esquecerá tão cedo, mas também de ter recebido uma contribuição racional que ampliou a sua visão da história. O ato de se emocionar favoreceu o ato de aprender e vice versa.
Um dos aspectos mais curiosos e inovadores da direção de Flávio império é a maneira direta pela qual os intérpretes se dirigem, em vários momentos, ao espectador, arrancando-o violentamente de sua passividade, transformando-o em interlocutor de um diálogo homem a homem, quase em co-intérpretes do espetáculo e co-celebrantes do ritual. Esse tratamento começa com a passagem particularmente bem pensada do diálogo entre Pedro e o Padre: o padre desce na plateia, enquanto o operário da cena coloca questões relativas aos problemas da responsabilidade do indivíduo na sociedade; enquanto expõe estas questões não olha para o Padre mas sim para os espectadores, de uma maneira tão direta que são eles que se sentem implicados. Os mesmos recursos são utilizados em outros momentos, seja a partir do palco ou na platéia, onde um exército de Senhoras Carrar leva os espectadores para a ação, fazendo com que eles se sintam participantes dos eventos, expostos a necessidade de escolher uma posição. Como estamos longe do tradicional e impessoal discurso bretchiniano, com o rosto virado para a platéia; e como estamos longe dos medos inofensivos que o coro de Roda Viva provocava nos espectadores!
INSPIRAÇÃO
Mas, com todas essas qualidades de invenção e inteligência, a direção de Os fuzis da Senhora Carrar não teria a metade da eficácia que ela tem, se não se apoiasse continuamente sobre imagens extraordinariamente inspiradas que agem poderosamente sobre os sentidos do espectador e desarmam, através de uma emoção puramente estética, suas eventuais resistências. É, sem dúvida nenhuma, um espetáculo concebido por um artista plástico extremamente sensível à dinâmica própria do teatro, e consequentemente capaz de criar uma beleza visual que sempre parte de uma noção de movimento. Por exemplo, o cenário, examinado isoladamente, mesmo sendo muito bonito, não tem nada de excepcional: o que o torna emocionante e belo é a maneira como ele é utilizado, a iluminação nervosa e ágil, o movimento dos filmes e diapositivos que se integram aos elementos fixos, dando-lhes um valor de símbolos, em constante evolução de acordo com o sentido de cada cena. Algumas das imagens criadas por Flávio Império – a saudação às brigadas internacionais- a passagem de Tereza agarrada a seu filho no chão, o protegendo com seu corpo, e toda a extraordinária missa final, com a composição da Pietá ao fundo, ficam gravadas na minha memória como um dos momentos privilegiados de toda a minha experiência de habitué de teatro. Não menos expressivas do que as imagens visuais são as imagens sonoras criadas pelo diretor, tanto pela música experimental, que vai desde Bach até Karloff e ao jazz, que pelos efeitos sonoros (o fantástico impacto das matracas metralhadoras) e os efeitos vocais (o grito de dor de Tereza Carrar multiplicado pelo coro na platéia).
Honestamente eu não saberia dizer se os intérpretes dos papéis de Pedro, Manuel , do Padre e da Senhora Perez são bons atores; em um outro tipo de espetáculo a clara inexperiência de cada um deles acabaria talvez por incomodar, mas aqui ela não atrapalha e todos cumprem bem a tarefa que lhes cabe. O intérprete do papel de Pablo já tem uma considerável gama de recursos e uma bela sensibilidade, enquanto que a jovem atriz que interpreta o papel principal de maneira inesquecível é uma revelação.
YAN MICHALSKI