LIBERTAS QUAE SERA TAMEM
(1981)

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  • REPERCUSSÃO (2/2)
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    Helena Katz
    Folha de S. Paulo
    25 de abril de 1981

    Acervo Flávio Império

    © Helena Katz

    Corpo de Baile não acerta com a música

    Egberto Gismonti é um gênio. Sua nova partitura, criada especialmente para o Corpo de Baile Municipal, traz uma riqueza na trama das tessituras que explora, uma musicalidade tamanha na arquitetura dos blocos rítmicos, que, desde a primeira audição, deslumbra pela beleza do seu resultado sonoro. Uma música ágil, recheada pela inventividade tipicamente gismontiana, que constrói climas sonoros absolutamente propícios ao movimento. É fascinante perceber como Gismonti consegue uma linguagem tão dançante no seu trabalho.

    Enfrentar uma obra dessa qualidade já não seria empreita fácil. Sabendo que ela foi composta para um roteiro de Antônio Carlos Cardoso (ex-diretor da companhia que procurou Egberto Gismonti e encomendou a partitura), mas terminou sendo encenada por Luís Arrieta (o atual diretor-artístico do Corpo de Baile Municipal), imagina-se que as dificuldades tenderiam mesmo a aumentar. Libertas, a nova coreografia, que estreou no próprio 21 de abril, padece de um mal frequente nas peças de dança: a música que se ouve é melhor que sua transmutação em movimento.

    Coreograficamente, esta é a mais pobre criação de Arrieta. Algumas poucas frases e suas limitadas variações que, infelizmente, não bastam para dizer claramente o significado desta obra. O programa já avisa que se trata de "uma adaptação livre" do Romanceiro da Inconfidência, escrito por Cecília Meireles. A liberdade na adaptação representou uma tentativa de despir o episódio de suas características tipicamente nacionais e buscar no fato histórico retratado no poema, talvez o que de universal existe nos crimes que são cometidos contra a democracia. A intenção não se realiza, uma vez que Libertas não se perfila ao lado das criações que cantam a liberdade como um hino, uma esperança ou um objetivo para qualquer luta.

    A fuga ao regional conduziu Libertas ao hermetismo das simbologias pouco acessíveis. O resultado, em termos de conceituação, fica naquele pântano do meio-termo: nem uma arrojada criação que inova a linguagem, nem uma contrinuição à dança que se volta para a história de seu País. Mesmo em termos da estrita evolução da companhia, esta coreografia se instala apenas como a primeira a utilizar um compositor popular para uma partitura original numa obra única, sem intervalo. Muito pouco convenhamos quando se tem em mãos uma partitura como a que Egberto Gismonti produziu.

    Quando a cena fica ocupada apenas pela dança, sem o apoio de recursos teatrais, a estrutura coreográfica de Libertas revela sua inconsistência. A iluminação de Iacov Hillel é, mais uma vez, a estrela do espetáculo. (A música de Gismonti paira acima, claro.) O talento do iluminador Iacov Hillel, requintado e tecnicamente perfeito, não se compara ao do diretor Iacov Hillel, ainda incipiente. Falta exatamente a Libertas uma direção teatral mais madura que não permitisse que a sequência de cenas se revelasse apenas um desconjuntado de memórias, que recuperasse a unidade do tema que está sendo dançado. Os cenários e figurinos de Flávio Império escolheram a "economia" do luxo à "opulência" do exibicionismo. São muito bonitos e pecam apenas pela excessiva obediência aos padrões do bom gosto convencional. Fica tudo arrumadinho demais, bem acabadinho demais, e isso também esvazia a proposta do espetáculo. É preciso libertar o "profissionalismo" destas aparentes regras de execução.

    Pode ser que Arrieta tenha desejado homenagear alguns dos mais expressivos coreógrafos contemporâneos. Em Libertas se encontram citações de Béjart, Cranko, Martha Graham, do próprio Arrieta (será que não é um pouco cedo para auto-citação?) e até mesmo de Décio Otero. Pode ser. Mas a homenagem - caso seja realmente intencional - também não é clara.

    Ielê Bittencourt, o maitre do CBM, continua realizando um excelente trabalho com seus bailarinos. A companhia melhora o desempenho técnico a cada apresentação e revela ótimos profissionais, como Leila Sanches (linda a sua "Mulher de Branco") Júlia Ziviani (muito bem como a "Santa" de azul ou como mucama), Lilia Shaw (que se aprimora a cada espetáculo) e Sônia Melo (boa a sua movimentação como "Ouro").

    Somando-se os bugalhos com os alhos, Libertas lembra duas sentidíssimas ausências: a da Inconfidência e a de Minas Gerais.

    HELENA KATZ

    LIBERTAS QUAE SERA TAMEM
    (1981)