OS INIMIGOS
(1966)

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  • REPERCUSSÃO (3/6)
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    João Apolinário
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    Acervo Flávio Império

    © João Apolinário

    GORKI E SEUS INIMIGOS

    Creio que não terá sido por simples coincidência que no átrio do TBC, sexta-feira última, noite de estréia, para a crítica da peça de Gorki, Os inimigos, se vendia, entre outros livros, os ensaios de Plekhanov, Arte e Vida Social. Sendo ele um dos principais teorizadores marxistas e lúcido crítico desta peça, cuja defesa fez um ano após ter sido escrita e editada, talvez seja muito útil lê-lo para se ter uma noção mais exata da importância de Os Inimigos no contexto da dramaturgia universal. Claro que pode argumentar-se, associando as ideias de um ao texto dramático do outro, que as conclusões são óbvias. Mas, insisto, não obstante, pois o espectador mais exigente, tem a oportunidade de conferir a validade da discussão que a crítica idealista e impressionista ainda hoje propõe sobre a atualidade da peça. Para os outros, os que não se preocupam com uma visão especulativa dos problemas que derivam da peça, proponho que adotem a velha sentença de Spinoza: “interessam-me os atos humanos, mas não para rir-me deles, nem para compreendê-los”. E mais: que o leiam com muita atenção o programa que o Oficina distribui. A opção de uns e de outros, junto, porém, aquela que me parece deve ser a minha: qual a perspectiva histórica, segundo a qual devem ser interpretados e compreendidos os fatos e atos humanps cujas analogias se devem estabelecer entre duas épocas (1905-1966), dois povos (o russo e o brasileiro) e das situações psico-sociais (o prelúdio da Revolução Socialista e a decadência do neo-capitalismo)? Por isso acho melhor ler Plekhanov, pois a resposta é longa. Comecemos por saber que todo o sistema histórico sempre tende por anular o conceito orgânico que lhe serve de estrutura. Daí o dilema: para ultrapassar um é necessário suprimir o outro. Ora, o espectador brasileiro, a quem o diálogo do Teatro Oficina é proposto, na sua maioria, é constituído por uma elite pequenoburguesa, de certo modo intelectual ou intelectualizada, que pensa uma coisa e faz outra. Diamos mesmo que esse público (não tenhamos ilusões: senão levarem Os Inimigos ao povo, o povo não vai a Os Inimigos) é formado por uma infima camada de protótipos multi-raciais, cujos conceitos dos sistemas históricos, especialmente aqueles em que vive, se fundamentam nas mais díspares interpretações: sobrenatural, heróica, física, sócio-biológica, racial, menos a interpretação materialista da história. Aqui as exceções confirmam a regra. E sendo assim, resta-nos ver a peça sob dois ângulos opostos: se for para justificar os fenômenos políticos que eclodiram 12 anos depois, a peça é romântica, os personagens são esquemáticos, a mensagem é obsoleta. Mas se for para explicar (e assim deve ser) o aparecimento de idéias como reflexo de uma realidade objetiva externa, obedecendo, como obedece, o conflito dramático à força de uma psicologia e dinâmica da vontade e do pensamento de um povo, limitado por condições materiais e por uma psicologia coletiva que se assemelha, ainda hoje, a uma realidade atual, no caso, flagrantemente brasileira, então Os Inimigos é um espetáculo polêmico, exemplar e muito importante. Mais: não obstante a falência dos movimentos operários europeus, que fizeram do seu espírito de classe um companheirismo romântico, responsável, entre as duas guerras, pela decadência democrática, o espetáculo apresentado pela equipe do Teatro Oficina tem um significado histórico adentro do nosso teatro. Mas será necessário que o espectador lhe retire toda a especulação política, quiçá demagógica ou panfletária, que aliás Os Inimigos só possuem na medida em que tal lhe seja atribuída. Ao contrário, deve conferir-se ao espetáculo o valor expresso de uma demonstração reslística da ientidade de situações humanas, que valem por si mesmas, como prova de uma denúncia feita por artistas conscientes de sua missão e responsabilidades, artistas que honram a sua arte e a sua condição de brasileiros.

    JOÃO APOLINÁRIO

    OS INIMIGOS
    (1966)