PANO DE BOCA
(1976)

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    Depoimento Fauzi Arap
    para o programa do espetáculo
    Acervo Flávio Império

    © Fauzi Arap

    HISTÓRIA – OS INIMIGOS (DENTRO OU FORA)

    “Fauzi realiza um perigoso deslocamento geográfico do inimigo...”
    F. Peixoto, no jornal – O MOVIMENTO.

    O Teatro de grupo, na formação de atores novos, do novo teatro, utilizava como técnica, ou pelo menos, tinha por princípio a morte do “ator-estrela”, para valorizar o grupo e a “ideia” do autor, em seu lugar. O grupo se formava e existia a partir de um critério ideológico, de uma filosofia, e tudo nascia daí. Interpretação, direção, dramaturgia, tudo era apoiado univocamente em uma ideia. Acusava-se, no teatro antigo (O T.B.C. – TEATRO BRASILEIRO DE COMÉDIA) uma forma ultrapassada e europeia e importada de teatro. Era preciso descobrir uma outra linguagem, a nossa linguagem. Foi um período fértil. Aquele trabalhar em grupo, aquele construir coletivo e em torno de uma ideia central um espetáculo, aquelas análises exaustivas do texto, os laboratórios, as pesquisas, foram um momento histórico fundamental na história do teatro brasileiro e do Teatro de Arena. E do Teatro de Arena saíram Guarnieri, Vianinha, Flávio Migliaccio, Nelson Xavier, Chico de Assis e outros, todos eles autores-diretores e atores.

    Houve uma exceção a essa regra – José Celso. Que se aproximou do Arena um autor e saiu um diretor. As críticas a seus textos feitas por Boal, paralisaram o autor. E, mais que isso, paralisaram o processo de elaboração dos problemas do indivíduo Zé Celso, através de seus textos. Eles eram acusados de serem “pequeno-burgueses”. Nasce o Oficina e, mesmo como diretor, ainda as mesmas acusações.
    Toda peça do Zé tem uma mesa e uma família. Como se Boal ou qualquer outro não tivesse família também.

    Mas, enfim, os “Pequenos Burgueses” fizeram balançar a liderança do Arena.
    Boal, cego por sua lucidez. Na “Feira Paulista de Opinião”, seu texto era, evidentemente, o mais fraco, porque não tinha paixão, porque ele não se discutia, era esquemático e ruim.

    Eu estou falando sobre a importância do aspecto subjetivo na criação, sobre a necessária subjetividade do criador.

    Mais adiante, começou a acontecer no mundo e aqui, também, uma desvalorização da palavra, começou-se a minimizar a importância do autor e, aos poucos, o diretor de teatro se escolhia um diretor-autor. E era preciso revolucionar tudo, a cada espetáculo. Cada diretor tinha que se provar um gênio a cada espetáculo e começamos a nos perder no “agora”. A forma engolia o conteúdo. A tentativa de suprimir os conflitos próprios da vida e de sua dinâmica natural, assassinar o antagonista, significa fatalmente uma paralisia e uma auto-destruição futura ou até mesmo imediata. É preciso aprender a suportar a tensão inerente à vida, à criação. O movimento síntese nasce somente depois de existir a negação. A Roda não giraria sem o atrito, o chão resiste ao movimento e, ao mesmo tempo, o fabrica, pela sua resistência.

    O querer exterminar todo e qualquer antagonismo, isso é uma forma de loucura suicida, ou/e assassina.
    Será que os vícios e o veneno que os diretores-líderes acusavam fora deles, não estavam presentes dentro deles mesmos?

    A morte do “autor” era, talvez, um passo a mais em direção ao poder absoluto, que era namorado inconscientemente por todos e por cada um deles, diretores.

    Depois das estrelas, os autores.

    Aos poucos, o diretor viria a ser a estrela absoluta.

    Se a desvalorização da palavra veio da censura exercida sobre o teatro de fora, ou se nasceu da mesma semente que gera censura, mas de dentro, se nasceu da vaidade dos diretores, de sua ambição, de seu desejo de poder, é uma pergunta que se põe. Existe uma dialética interação entre a coisa social e política e o indivíduo.

    E se todo “mal” é projetado sobre a coisa social, o indivíduo se absolve de uma forma fácil e infantil de se considerar mais longamente, e também de perceber o quanto os seus demônios interiores são cúmplices daquele mal que ele acusa fora.

    Não mais estrelas, não mais autores.

    Restou um bando de atores, de preferência jovens, de preferência que não soubessem quase nada de teatro, para que pudessem ser manobrados à vontade, atores eu fossem capazes de uma entrega total, uma entrega tão total que só a ignorância e a ingenuidade propiciam.

    Os diretores- autores não queriam qualquer oposição ao seu trabalho.

    Caíram na armadilha da onipotência, do totalitarismo.

    E a face complementar desse fenômeno foram as criações “coletivas”, as experiências, mas, em geral, realizadas por aqueles jovens iniciados e que queriam acreditar que sem nenhum estudo e sem nenhum esforço e sem nenhuma disciplina é possível criar alguma coisa. Dos atores jovens, era pedido que fossem somente o corpo e a curtição, enquanto o diretor era a cabeça absoluta de todos. Pensar, em qualquer ator, passou a significar resistência, medo, falta de entrega... Passou a significar ser antigo etc. As teorias estéticas e as palavras (INVENÇÃO, TROPICALISMO e OUTROS QUE TAIS...) o quanto tudo era personalista e o quanto isso servia tão somente ao todo-poderoso diretor. O teatro começou a reinventar o psicodrama. E a necessidade de autodestruição dos líderes desse período me parece, ela veio da prisão em que se meteram.
    Falo de Zé Celso e do Oficina particularmente, porque ilustram mais brilhantemente o que aconteceu nessa época. Mas mesmo em grupos anônimos, e que nunca chegaram a estrear seus espetáculos, deu-se a mesma coisa.

    A mitificação de Zé Celso, que ele desejou e que conseguiu paralisar seu processo verdadeiro e necessário. Como não amar os figurantes que o desrespeitavam e que queria destruir a “instituição” Oficina? Se essa instituição pesava sobre sua cabeça como uma máscara artificial e pesada? Eu sou o Oficina... De quem a culpa, de quem o erro? Por que é que se precisa de um mito? Para que possamos nos adiar e para não agir?
    O sucesso cria a prisão dupla de obrigar o indivíduo a continuar perenemente idêntico a si mesmo, ou o oposto, que é a mesma coisa, que é cobrar do indivíduo que se supere continuadamente. Mas quem cobra isso? A censura? Por que não se deixa cada um trabalhar em paz? Por que é que se tem a necessidade de mitos?

    Os mitos são um jogo de poder e um jogo para estancar a coisa criadora, a possibilidade criadora do próximo. E por que tememos tanto a liberdade alheia? Por que ela nos representa e nos intima a ser livres também? E só suportamos dela a ficção, o mito, precisamos da palavra para nos distanciarmos dela e assim criamos a coisa “artística” para ficarmos protegidos de nós?

    Este papo meu está qualquer coisa.

    Enfim, a autodestruição... e aí eu estou falando de um mistério. Mistério? Não sei. O poderoso fica aprisionado pelo seu poder e ele mesmo namora sua destruição. Todo o poderoso teme. E o medo assassina e o medo tortura.

    Estou falando sobre a necessidade de despertar quem está perdido dentro de si, dentro de seu medo, meio a seus fantasmas, estou falando sobre a necessidade de acabar com o medo para que não haja violência e para que possamos reencontrar paz. Para todos e para cada um.

    ENFIM.

    Conversando com alguém, acabei me referindo ao fato de que Pano de Boca é uma peça-matriz. É realmente uma peça síntese do meu conhecimento teatral e do mundo.

    Para mim mesmo, ela é isso. E ela me serviu para conquistar a consciência daquilo que eu sentia e percebia e tinha preguiça de organizar. Escrevê-la foi um processo dinâmico. Ela tem uma dimensão ocultamente didática. Porque sua didática não é lógica, mas analógica. Segue a lógica poética do inconsciente, das associações de ideias etc. e ela foi estruturada a partir das “coincidências” estranhas que observamos na vida, aquilo que Jung chamou sincronicidade. E, também, a partir do fato de o quanto os acontecimentos são simbólicos.

    Tenho a consciência do fato de ela ser uma peça extremamente mobilizadora. Porque ela, em si, é mobilizadora para quem faz por causa de sua natureza quase psicodramática, (ATORES FALANDO DELES MESMOS) e mobilizadora para quem vê, porque o canal de comunicação principal de sua estrutura e de sua temática, é o mesmo canal utilizado pelas tragédias, a comunicação que existe se passa além ou aquém da própria superfície. Ela transa num nível arquetípico. Isso faz dela uma peça “mágica”.

    Alguém falou sobre arqueologia. Tem a ver.

    Uma peça matriz. A multiplicidade de estilos – revista, drama, monólogo, uma quase tragédia, teatro do absurdo, uma peça sem estilo, ou com os restos mortais de todos os estilos, um “concerto”, o drama de nosso tempo – o teatro do apocalipse.

    Que venha a Fênix. Das cinzas. Ou ainda é cedo?

    Eu esgotei a minha capacidade de me explicar. Vejam.

    Mas ainda uma coisa –
    Guarnieri com o Grito Parado no Ar rompeu minha inércia.
    Então, sou seu devedor.
    Nada do que disse, ou que tenha sido publicado em qualquer lugar pretendeu ou teve intenção menos limpa.
    Ou melhor: sua peça me ameaçou porque ignorava o desbunde, o abandono do trabalho, essa coisa toda, e que eu acredito e acreditava precisavam ser discutidas e colocadas no seu devido lugar... Mas chega.

    De qualquer forma – Obrigado, Guarnieri.
    Obrigado, Boal. Obrigado, Clarice. Obrigado, Abujamra, José Celso, José Vicente.
    E obrigado todos.
    E obrigado, Antonio Di Nardo Jr.
                         

    FAUZI ARAP

    PANO DE BOCA
    (1976)