OTHELLO
(1982)

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  • REPERCUSSÃO (1/2)
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    Sábato Magaldi
    Jornal da Tarde
    5 de fevereiro de 1982

    Acervo Flávio Império

    © Sábato Magaldi; Fotografia de Sérgio Berezovsk

    Um Othello sem pompa, mais feminista que político

    Provoca um grande prazer, antes de mais nada, verificar que nenhum esforço foi poupado para a montagem de Othello, cartaz do Teatro Cultura Artística. A produção cercou-se de todos os cuidados, dando relevo a pormenores que artistas menos atentos esqueceriam. Podemos orgulhar-nos do nível estético das preocupações e do lavor artesanal da complexa máquina mobilizada no espetáculo.

    Quanto ao resultado propriamente dito, colocam-se muitas questões. Se numa peça medíocre o ator cresce e empresta o seu talento ao texto, a obra de gênio dificilmente é captada, na multiplicidade de aspectos, pelo desempenho. Ela propõe sempre numerosas leituras, com frequência conflitantes. Quando um ator encarna bem uma faceta dos heróis shakesperianos, mesmo que ela não seja a que eu gostaria de ver ressaltada, me dou por satisfeito. Cada época apresenta a sua imagem de Shakespeare e ele está longe de parecer esgotado.

    Vejo na encenação de Juca de Oliveira o intento louvável de aproximar Othello do espectador de hoje, libertando-o de conjeturas demasiado intelectualistas. A própria tradução, sem perder a riqueza imagística do original, persegue o coloquialismo do diálogo, recomendável para que a história se comunique. Evitaram-se a pompa e o tom grandioso, que em geral se associa à representação dos clássicos. Buscou-se a equivalência moderna da humanidade estuante de Shakespeare. E se esqueceu o modelo das concepções britânicas, muitas vezes acadêmicas, distantes de nossa sensibilidade.

    Como proposta, nada a contradizer essencialmente. Os crimes passionais, em "legítima defesa da honra", estão na moda, e ao assassinar Desdêmona, Othello diz: "Pois em tudo o que fiz,/ não me moveu o ódio e sim a honra". Pretexto para a discussão de um tema que apaixona agora os brasileiros e serve de justa bandeira para a luta feminista? É bem verdade que a tônica poderia estar na trama urdida por Iago para subir ao poder e que se vale da ingenuidade do mouro. A riqueza enciclopédica da tragédia permitiria muitas outras focalizações e, sem dúvida, se mais abrangente, a montagem tem a faculdade de ampliar o público.

    Juca de Oliveira faz uma bela criação, porque, além de ressaltar a humanidade de Othello, se serve de voz poderosa, de bonito timbre e dicção clara. Poucos de nossos atores têm o porte dele para os protagonistas trágicos e, pela nobreza, o texto não perde estatura. Infelizmente, já não ocorre o mesmo com o talentoso Ney Latorraca. Ele imprime a Iago o tom da intriga palaciana de corredores, que de fato reclama a voz baixa e a sutileza de intenções. Entretanto, talvez pelo hábito naturalista das telenovelas, Ney se perde na emissão vocal, deixando que muitas réplicas escapem do entedimento da platéia. Corrigida essa falha, seu desempenho poderá crescer, pela coerência da diretriz adotada.

    O vigor de cada personagem shakesperiiana exigiria intérpretes maduros, sólidos, de segurança indescutível. Não dispomos de número suficiente de atores para convencer, num só espetáculo, como doge de Veneza, senadores, oficiais etc. Temos de contentar-nos com jovens, ainda inexperientes, cujas características se aproximem das exigidas pelos papéis. Assim ocorreu na encenação da Cia. Tônia-Celi-Autran, há 26 anos, em que ao lado de Paulo, Tônia Carrero e Margarida Rey, começavam a impor-se Cláudio Corrêa e Castro, Oswaldo Loureiro, Sebastião Vasconcelos, Antônio Garanzolli e Benedito Corsi (a direção de Adolfo Celi atribuiu a Felipe Wagner histrionismo inaceitável no papel de Iago).

    A nova versão de Othello padece de mal semelhante/ Gostaríamos de ver atores mais experientes nos desempenhos de Desdêmona, Cássio, Montano, embora Christiane Rando, Osvaldo Raimo e Washington Lasmar tenham qualidades para as personagens. Christiane sublinha a espontaneidade, Osvaldo a simpatia e Washington a dignidade. Imara Reis marca a pequena intervenção de Bianca e Carlos Augusto de Carvalho não consegue, como Rodrigo, a identificação que lhe permitiu ser o extraordinário Macunaíma. Cacilda Lanuza (Emília) passa de uma atuação discreta à grandeza reclamada pelo desfecho da tragédia.

    Falta a personalidade de um diretor, que imprimiria dinâmica própria e unidade estilística ao conjunto, mesmo se fossem sacrificadas virtudes da ótica atual. centrada na interpretação. Um ritmo orgânico e acertos finais propiciaram o acabamento, de cuja ausência se ressente o espetáculo, apesar do merito de cada parte isolada.

    Admire-se, por exemplo, o despojamento da cenografia de Flávio Império, que sygere os vários ambientes, com poucos acessórios construídos, e o jogo de panos que se armam em rica plasticidade. São igualmente felizes os figurinos de Murilo Sola, criativos sem o empenho da reconstituição arqueológica. A sonoplastia de Flávio Calabi, é, na verdade, uma partitura muito sensível, que valoriza a atmosfera de cada cena. E a iluminação de Iacov Hillel tem requintes que mereceriam estudo à parte.

    A genialidade da tragédia e os valores da montagem recomendam o prestígio a Othello, não obstante as restrições apontadas. Não é todos os dias que o nosso teatro se alça a um vôo tão ambicioso e honesto.

    SÁBATO MAGALDI

    OTHELLO
    (1982)