UM BONDE CHAMADO DESEJO
(1962)

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  • REPERCUSSÃO (3/4)
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    Helena Silveira
    Folha da Manhã
    sem data

    Acervo Flávio Império

    © Helena Silveira

    PAISAGEM E MEMÓRIA
    Maria Fernanda & Blanche Dubois

    Se Maria Fernanda não fosse uma grande atriz, se o conjunto dos artistas que se exibe no Teatro Oficina fosse falho completamente, de recursos artísticos, se Boal tivesse errado em toda a linha no desenho da peça, em seu entendimento, ainda assim eu aconselharia ao leitor: - Vá ver um  Bonde Chamado Desejo ou Uma Rua Chamada Pecado (que esses dois nomes cabem bem sobre a versão do drama de Tennessee Williams). Evidentemente, todos sabemos que Fernanda é uma atriz ilustre, que o conjunto de gente extremamente jovem do “Oficina” é muito honesto e que Boal é um diretor de excelente quilate. Por conseguinte. Existem muitas atrações nesse espetáculo. Todavia, para mim, o que nele mais me comoveu foi um detalhe. Mas detalhe denunciando a extrema sensibilidade de quem atentou para ele. Maria Fernanda? Boal? Não sei e aqui fica a pergunta para que o aplauso vá a quem o merece. Quem escolheu o comovente guarda-roupa de Blanche Dubois? Não apenas os vestidos e chapéu que ela exibe, mas todas aquelas velhas musselinas, velhas rendas, murchos tafetás que transbordam da mala aberta e aos quais se abraça como naufrago tal se para não mergulhar de chofre na loucura precisasse se agarrar aquelas destroços de um mundo esboroado?

    Já se disse que Charcot, na ante-sala de seu consultório, fazia diagnósticos de histeria em apenas fitando os chapéus de suas doentes. Mas a verdade é que nada denuncia mais certos estados de extrema frustração, de bovarismos, de um conjunto de males derivando para graves psicoses (caso de Blanche Dubois) que a vestiaria. Isso, evidentemente, em se tratando de mulher. Quantas conheço reformando, limpando, refazendo seus velhíssimos vestidos, não por medidas, não por medidas econômicas mas porque inconscientemente, naqueles trapos elas se agarram as suas pobres ilusões defuntas. São enternecedores vestidos-esquifes. Vestiram uma mulher jovem, bela, atraente, amada. Hoje, feneceram como a pele moça, acompanharam a decadência do talhe, estufaram-se de mofo como a carne desgastada de seus músculos frouxos. Em frangalhos denunciam a ex-rainha num trágico-burlesco de roupa de picadeiro. A antiga sedutora imagina que se puder preservar da corrupção definitiva do tempo seus lames, suas plumas, suas gazes, também defenderá o amado corpo da sua juventude e, sobretudo, defenderá do mergulho no nada um clima psicológico, uma euforia, uma alegria de viver que ela sabe para sempre.

    Sim, de há muito em teatro, nada me comoveu mais que ver Maria Fernanda de chapeuzinho branco adornado de véu – esse véu incumbido de esmaecer o amarfanhado da pele – com seu romântico raminho de “muguet” como se estivesse pronta para subir a escada de um remoto navio que a transportasse ao arrepio do tempo até o porto dos DIAS-PARA-SEMPRE-MORTOS...

    HELENA SILVEIRA

    UM BONDE CHAMADO DESEJO
    (1962)