UM BONDE CHAMADO DESEJO
(1962)

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  • REPERCUSSÃO (1/4)
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    Artigo de publicação, autoria e data não identificados

    Acervo Flávio Império

    Um bonde chamado desejo: a encenação

    Seriamos tentados a dizer que o desempenho de Maria Fernanda é a melhor e a pior coisa de Um Bonde chamado Desejo, espetáculo estreado ontem, para a crítica, pela Companhia de Teatro Oficina. Melhor porque se trata de fato de uma grande atriz que ainda não teve a sua oportunidade dentro do nosso teatro (as suas interpretações foram poucas, e sobretudo esparsas, faltando-lhe continuidade para chegar a ser uma carreira), pior porque, embora com inegável talento, a atriz distorce a personagem a ponto de quase arranca-la do seu contexto dramático.

    Blanche Du Bois é neurótica, mitomaniaca, ninfomaniaca. Admitido. Mas não faríamos justiça à sua complexidade, como pessoa humana, nem à sua riqueza, como personagem de teatro, se não percebêssemos igualmente, que a sua neurose é uma forma precária de adaptação à realidade, que a mentira encobre um desejo genuíno de pureza, e que a própria ninfomania exprime a seu modo, a contra-senso poderíamos dizer, uma necessidade autêntica de comunicação afetiva com as pessoas .

    Maria Fernanda é esplendia em dois pontos: na comédia que representa conscientemente perante Mitch e no seu pólo oposto, isto é, quando se despe de qualquer artifício, quando chega ao centro de si mesma, narrando com tocante sinceridade o episódio do suicídio do primeiro marido. Mas entre esses dois extremos – a mentira e a veracidade total – ela frequentemente se extravia, entrando pela primeira vez em cena como se já necessitasse de ser internada (o que é a conclusão, não o dado inicial do enredo) e passando por todo o terceiro ato quase em transe, quase em estado sonambúlico. Ora, quando a personagem perde o contato com a realidade, com a normalidade, é boa parte da emoção que desaparece, porque deixamos de nos identificar com o que sucede no palco. Maria Fernanda faz Blanche Du Bois representar tanto, que nos torna testemunhas, não participantes do seu drama. É uma criação muito bem feita, representada com inteligência e sensibilidade, mas artificial demais para nos tocar verdadeiramente.

    Até que ponto a culpa é da direção de Augusto Boal? Terá o papel um sentido de crítica social, simbolizando a alienação de toda uma classe – a aristocracia sulista decadente – em contrate com o rude vigor de Stanley Kowalski? São questões que francamente não se pode responder sem outras referências a não ser o espetáculo.

    Mas, se assim for, teremos encontrado uma causa e não uma justificativa, a não ser que se aceite que a função critica do diretor é empobrecer e não enriquecer dramaticamente o texto.

    Stanley Kowalski, tal como foi interpretado, com felina astúcia e agressividade, por Marlon Brando, era muito menos estúpido do que desejava parecer. Blanche, com as suas intoleráveis pretensões de nobreza, é que o lançava para outro extremo. Ele também, em parte, representava conscientemente um papel. Sabia que a felicidade do seu casamento estava ameaçada por essa presença que se interpunha a todo momento entre ele e a mulher. Enfrentava e removia o obstáculo com dureza, impiedade mesmo, talvez até com uma ponta de sadismo, mas não sem inteligência, não sem localizar e explorar de imediado os pontos fracos do adversário. O fascinante, em seu caso, era exatamente essa mistura de violência e sagacidade primitiva.

    Mauro Mendonça simplifica a personagem: torna-a simplesmente um bruto. Dentro dessa concepeção, entretanto, dá-nos um desempenho consistente e bem executado, talvez o melhor de sua carreira, desde que passou para o registro dramático, que não foi inicialmente o seu.

    Célia Helena poderia estar mais simples (“Stella” é o lado oposto de Blanche) e Mauricio Nabuco explorar mais a fundo a figura de “Mitch”, mas ambos estão bem. Há ainda a ressaltar uma bela ponta a cargo de Renato Borghi.

    A surpresa, contudo, é o que Flávio Império consegue fazer com a arena do teatro “Oficina” pondo num espaço exíguo uma serie de elementos e não sobrecarregando a cena, achando o ponto exato de equilíbrio entre a economia e a ornamentação. Basta entrar na sala para sentir a presença de Tennessee Williams, para perceber o meio social e a atmosfera psicológica da peça.

    O espetáculo, de resto, não obstante tantas objeções, é de classe. Poderemos discordar dos seus pontos de vista, não negar a qualidade da execução. Um espetáculo, enfim, que não nos deixa indiferentes, com o qual temos prazer em entrar em discussão. 

    AUTORIA DESCONHECIDA

    UM BONDE CHAMADO DESEJO
    (1962)