CURADORIA

Arquiteto, cenógrafo, artista plástico e professor, Flávio Império teve a multidisciplinaridade como característica primordial de sua atuação. Entrelaçando diversas formas artísticas de maneira original, propôs a renovação da linguagem em cada campo de expressão, numa visão própria do papel do artista e sua obra. Algumas características fundamentais permaneceram centrais ao longo de toda a sua trajetória: a clareza da organização espacial, o virtuosismo do desenho, seja técnico ou artístico, o sólido embasamento conceitual que precede e fundamenta a solução adotada. Mas, para além dessas constantes, o seu fazer foi poliforme, dificilmente catalogável: inventivo, virtuoso, experimentador e polêmico, Flávio não foi apenas um dos protagonistas mais destacados de uma época fundamental na história do teatro brasileiro, mas também um artista (pintor, gravurista, criador de objetos e instalações) que soube manter-se fiel à sua personalíssima visão do fazer artístico, um arquiteto intenso e engajado, entre os mais admirados da sua geração, um professor provocador, dedicado, inconformado com a burocratização das instituições.

O desafio deste site é, portanto, dar conta da complexidade da personalidade do artista, fornecendo subsídios tanto para a compreensão de sua trajetória pessoal, como para a correta avaliação de sua obra e pensamento no panorama de importantes momentos da produção cultural do país. Coerentemente com essas premissas, a curadoria optou por um site dinâmico, apoiado num sistema que faz com que ele se reconfigure constantemente, a partir das escolhas do visitante. As páginas não foram desenhadas individualmente, seguindo uma malha rígida, o material disponível é organizado automaticamente com base no tamanho da tela utilizada e no conteúdo selecionado, seguindo, de certa maneira, o modus operandi do próprio Flávio Império: na sua concepção da arquitetura, as construções deveriam, idealmente, ser versáteis, sempre abertas a possíveis modificações, sugeridas pelos usos e necessidades mutáveis dos usuários.

Os trabalhos realizados estão divididos, de maneira geral, de acordo com as principais áreas de atuação do artista – artes cênicas, artes plásticas, arquitetura e ensino - mas os visitantes terão também a possibilidade de navegar a partir de percursos temáticos interdisciplinares, que reconfiguram o material disponível a partir de outros pontos de vista. Ao longo dos próximos anos, pesquisadores e conhecedores da obra de Flávio Império serão convidados a se utilizar desse recurso para aportar suas leituras desse imenso corpus artístico.

Finalmente, cabe ressaltar que, por motivos técnicos ou pela necessidade de leitura mais aprofundada sobre os temas, não foram incluídas neste site, a vasta produção do artista nas áreas de audiovisual – tanto os extraordinários documentários em Super8 realizados por ele entre os anos 1970 e 1980, quanto sua colaboração no cinema ficcional de longa metragem-, a atividade poética, produzida em cadernos, cartas ou manuscritos durante toda sua vida, e mesmo os inúmeros projetos desenvolvidos pelo artista para peças gráficas, das quais constam aqui apenas alguns exemplos de programas, catálogos, folders e cartazes. Muitos esboços, ideias e outros projetos em que Flávio Império atuou estão contidos nos numerosos cadernos realizados ao longo dos anos, e em sua maioria disponíveis a pesquisadores no Acervo Flávio Império, de onde provém a quase totalidade do material aqui reunido, e onde encontra-se também a mais completa coleção de textos e publicações sobre ele.

A realização deste site teve por objetivo dar continuidade ao trabalho de preservação, catalogação e divulgação da obra do artista desenvolvido, desde 1987, pela Sociedade Cultural Flávio Império, responsável pela conformação do Acervo Flávio Império. Sua publicação foi viabilizada pelo apoio do Instituto Itaú Cultural que compreendeu, inclusive, a digitalização do material do Acervo e a elaboração de banco de dados, finalizando mais uma etapa prevista pelo Projeto Flávio Império.

Artes cênicas

A contribuição de Flávio Império na construção da visualidade cênica no Brasil é de reconhecida importância para o desenvolvimento da linguagem do espetáculo no país, tanto no ambiente do teatro, quanto da música popular, da dança e do cinema. Desde suas primeiras experimentações no palco percebe-se o traço particular do artista, tanto em sua atuação como cenógrafo e figurinista, quanto em suas incursões como diretor, roteirista e iluminador.

Flávio Império inicia seu trabalho alinhado com as diretrizes do teatro brasileiro moderno, mas logo torna-se referência da contínua transformação da cena nacional iniciada pelo forte movimento de vanguarda que marca a produção teatral dos anos 1960. Participando de produções em grupos como o Teatro de Arena e Teatro Oficina, e também em produções de companhias como o Teatro Ruth Escobar, Teatro Cacilda Becker e Teatro Popular de Arte/Maria della Costa, aprofunda as questões da espacialidade e da visualidade da cena como elementos constitutivos fundamentais ao espetáculo. Em diálogo com as teorias de Adolphe Appia e Gordon Craig, é com liberdade que atua tanto sobre o convencional palco italiano quanto na apropriação de espaços cênicos alternativos, como a arena e a semi-arena, tirando partido das diversas situações arquitetônicas. Com a mesma liberdade transita pelos diferentes grupos de produção, lida com suas principais linhas de influência – Bertolt Brecht, Stanislavski e Marx – e marca com sua original visão crítica, aguda e irônica, a cena.

O recrudescimento da repressão militar sobre a produção cultural do país coincide com o desenvolvimento de novas experiências no processo de criação artística brasileira. Para Flávio Império, o profícuo ano de 1969 parece fechar um ciclo que dará lugar a novas pesquisas. Em 1971 inicia-se a parceria do cenógrafo e figurinista com o diretor Fauzi Arap na concepção de Rosa dos Ventos, o show encantado, de Maria Bethania. A partir daí, sua produção observará novos valores, signos e formas em espetáculos teatrais ou nos inúmeros shows musicais que realiza junto a cantores e compositores como a grande parceira Maria Bethania, Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil - os Doces Bárbaros – entre outros.

A partir do final da década, com a realização de projetos junto a instituições produtoras como o Teatro Popular do SESI e o Corpo de Baile Municipal, e a elaboração de eventos como desfiles de moda ou de carnaval podemos identificar ainda novas transformações na expressão cênica do artista. Um movimento que pode ser percebido também em sua obra plástica – o desapego ao objeto em favor da expressão mais pura das cores, transparências e luzes sobre a maleabilidade dos materiais empregados.

A singularidade de seu trabalho como cenógrafo e figurinista se deve à formação de arquiteto e à atividade contínua nas artes plásticas, mas, sobretudo, à sua ampla visão sobre a construção do espetáculo como um todo, como se vê nas raras montagens das quais assume a direção geral, além da concepção dos cenários e figurino: Os fuzis de dona Tereza, de 1968, Labirinto, balanço da vida, de 1973, e Absurdos ou os doze trabalhos de Flérsules, espetáculo de dança de 1984.

A seleção do material documental sobre os projetos cênicos de Flávio Império a ser publicado neste site foi realizada com base em duas premissas fundamentais: a seleção os projetos mais representativos de cada fase de sua obra cênica, assim como do momento histórico em que estão inseridos; a verificação da possibilidade de compreensão do projeto a partir do material disponível. Optamos por publicar os artigos e críticas de jornal e revistas que o próprio artista guardou, pois que a partir deles pode-se compreender não apenas como foram recebidas as obras como também detalhes particulares da montagemem questão.

A produção de Flávio Império nas artes cênicas foi dividida em grupos formados a partir do gênero dos espetáculos dos quais participou: teatro, shows musicais e dança, além do tópico reservado a depoimentos e textos do artista sobre o tema geral. Dentre cada grupo, a ordem cronológica nos pareceu a mais adequada a uma publicação que não se pretende analítica, e que tem como objetivo principal disponibilizar informações e documentos para a realização de pesquisas sobre os inúmeros aspectos e formas de leituras possíveis sobre a obra.

Artes plásticas

Apesar de ser conhecido em primeiro lugar como homem de teatro, não seria errado dizer que a pintura e o desenho constituíram as principais ocupações artísticas de Flávio Império. Ainda pouco mais que adolescente, Flávio pintava e desenhava já com extrema seriedade e extraordinário talento, como provam algumas obras dos anos 1950 reunidas neste site. Se o domínio da técnica permaneceria um dos traços característicos da sua produção ao longo das décadas seguintes, os temas tratados e o estilo mudariam significativamente, refletindo, de certa maneira, tanto as transformações da sociedade brasileira quanto o percurso pessoal do artista. Ao longo dos anos 1960, Flávio Império participou, com suas pinturas, objetos e relevos, de algumas das mais importantes exposições do período, firmando-se como um crítico agudo e preciso da situação política brasileira, em perfeita sintonia com a produção mais marcante desses anos, em sua maioria abertamente crítica e polêmica. Nos anos seguintes, contudo, a partir de algumas experiências pessoais como a convivência com o grupo teatral Living Theatre, e o aprofundamento de leituras psicanalíticas e místicas, o percurso do artista tomaria um rumo mais pessoal: avesso ao mundo asséptico de museus e galerias, Flávio passaria a expor prevalentemente em espaços não convencionais, que frequentemente transfigurava por completo, criando verdadeiras instalações. Suas exposições tornar-se-iam, assim, “festas-exposições”, happenings, ateliês abertos onde o público poderia experimentar junto com ele na produção gráfica, principalmente serigráfica, à qual Flávio se dedicava experimentando de maneira incansável.

Num universo tão singular, complexo e até, de alguma maneira, idiossincrático, o partido curatorial escolhido para o site, no âmbito das artes plásticas, foi o mais neutro possível: as obras foram agrupadas com base na data da sua produção, e na técnica utilizada. Organizado também cronologicamente, o percurso por algumas das principais exposições das quais Flávio participou mostra outra faceta do artista, mais fluida e inclassificável: como ele mesmo afirmou, suas exposições individuais poderiam parecer coletivas, tamanha a diversidade de estilos, técnicas e temas explorados. Além disso, é principalmente nas exposições que a aspiração a uma arte produzida coletivamente, sem preocupar-se de questões de autoria e comercialização, faz-se nítida, evidenciando mais uma vez o caráter único de Flávio Império, e a coragem e coerência com que defendeu até as últimas consequências suas convicções.

Arquitetura

Trabalhando juntos desde a época de estudantes, em trio, dupla ou individualmente, Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro foram autores, na década de 1960, de projetos arquitetônicos convergentes, compromissados com a construção, que extravasava o plano objetivo da construção civil para o da construção de um sujeito e de uma sociedade equânime, a partir da recuperação do caráter coletivo do trabalho no canteiro de obras. Para tanto, a ferramenta dos arquitetos era a racionalização do projeto por meio de um desenho que considerasse a experiência do corpo produtivo, um projeto didático e rigoroso nos detalhes, com representações gráficas figurativas e texturas diferentes para cada material, como podemos observar nas pranchas dos projetos executivos apresentadas neste site. Nesse mesmo sentido, cada equipe especializada (marceneiros, eletricistas, encanadores) recebia um dossiê completo com a globalidade dos desenhos e memoriais descritivos da obra, para que todos soubessem o que todos faziam, o contrário de um trabalho alienado. Se os conceitos formulados durante a associação profissional dos três arquitetos tiveram desdobramentos em seus trabalhos individuais, posteriores à década de 1960, não se deve restringir a riqueza de cada um deles àquela colaboração.

De 1961 a 1968, os arquitetos experimentaram em algumas obras residenciais e escolares soluções possíveis para o problema da casa popular a partir de um sistema construtivo em abóbodas, primeiro agrupamento de arquitetura do site. O outro grupo, reformas, traz o projeto do Teatro Oficina (Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, 1967); e a reforma da casa do artista (1979-1985), que pode ser tomada como exemplo de uma arquitetura mais experimental e menos perene, que se aproxima da cenografia. Esse caráter empírico e efêmero dos poucos trabalhos de Flávio Império como arquiteto nos anos 1970 confundem-se também com as artes plásticas, como no caso das adaptações espaciais para a festa/ exposição de inauguração do Centro de Estudos Macunaíma, em São Paulo e de uma casa antiga para a loja Barra da Saia, em Cuiabá – MT, ambos de 1974. Para a reforma de sua casa as ideias são trabalhadas e retrabalhadas em uma série de croquis e anotações, sem o rigor de um projeto executivo ou formal, devendo os detalhes construtivos serem resolvidos na própria obra.

Três textos de Flávio Império, em momentos distintos de sua trajetória, completam o material escolhido pela curadoria: o primeiro, de cunho eminentemente político, escrito em 1965 e publicado no número monográfico da revista Acrópole sobre o trabalho de Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro; o segundo uma carta escrita em 1974 para seu cunhado sobre possível reforma da casa de sítio em São Luís do Paraitinga, em que se compara a um arquiteto medieval que trabalha na obra, a obra; e o terceiro um poema sobre a arquitetura autóctone no sertão, de 1981, que dá conta do crescente interesse do artista pela cultura popular brasileira.

Ensino

Desde o tempo de estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), quando trabalhou como diretor de teatro na Comunidade de Trabalho Cristo Operário, Flávio Império manteve atividades didáticas nas diversas áreas em que atuou, seja ministrando conferências, seja desenvolvendo cursos em escolas de arquitetura, artes plásticas e teatro. Contudo, se existe rico material documental sobre a produção nessas áreas, o ensino nem sempre foi motivo de registros fotográficos, cinematográficos e de imprensa. Daí que no site, tenhamos priorizado aquelas atividades de maior duração e que estivessem melhor documentadas no Acervo Flávio Império, garantindo ao público uma compreensão mínima dos processos de trabalho do artista como professor.

Ensino foi dividido em dois grupos: da Arquitetura e do Teatro. Apresentamos também alguns textos reflexivos de Flávio Império sobre suas atividades didáticas. Em ensino da Arquitetura, tratamos de sua trajetória na FAU-USP por quinze anos (1962-1977), cuja inflexão pode ser notada no começo dos anos 1970, quando começa a dar aulas numa disciplina optativa que apresentava grande vínculo com sua pesquisa pessoal no teatro e nas artes plásticas daquele momento. Ensino de Teatro traz duas outras experiências: a coordenação do curso de cenografia da Escola de Arte Dramática (EAD), por quatro anos (1963-1966); e a fundação do Centro de Estudos Macunaíma, escola de formação de atores em que atuou por três anos (1974-1976), inclusive na promoção de exposições de seu trabalho como artista plástico.

Essa publicação é uma homenagem a Amélia Império Hamburger, falecida em abril de 2011, a quem devemos a existência do Acervo Flávio Império, em sua rara completude. A organização e catalogação do acervo, assim como as análises, debates e depoimentos produzidos ao longo do trabalho desenvolvido pela Sociedade Cultural Flávio Império, constituem a base para a elaboração e realização do presente site.

Vera Hamburger, Jacopo Crivelli Visconti, Humberto Pio Guimarães