Procuro meu próprio equilíbrio entre o acaso e o improviso. Essa é uma chave que me acontece desde sempre e com a qual me acostumei a ir vivendo.
As bandeiras em pano "carne-seca" são a experiência mais próxima desse encontro possível, onde o incidente e o acidente se cruzam na criação de novas realidades.
Vira e mexe, eu me perco de mim. Nessas, perambulando pelo Nordeste, acabei por me identificar com os tabuleiros de "carne-seca" dos mascates do Mercado de São José, no Recife.
Ali, excluídas da convivência dos tecidos "normais", a "carne-seca" é vendida a quilo como "pano manchado", "pano com defeito de fabricação", a sucata da indústria de estamparia, tanto do Sul como do Nordeste mesmo.
Aos poucos decifrei sua linguagem.
Resultante das operações de limpeza do equipamento industrial de impressão serigráfica de estamparia, os retalhos de "carne-seca" retêm o rastro e padrões originais e o escorrido das tintas dissolvidas, de maneira aleatória.
Muitas vezes os "padrões"da estamparia aparecem decupados em suas matrizes componentes justapostas, superpostas, falhas ou contrapostas aos borrões e manchas das sobras de tinta. Tudo isso impresso "fora do registro".
Combinados no puro jogo do azar, até os "padrões" mais pueris tornam-se interessantes. A nova imagem é a do largo gesto do trabalho de limpeza.
Procurei encontrar, perguntando, uma possível origem para o nome.
Acabei por supor que "carne-seca" traga sua conotação analógica ligada ao fato dos retalhos de pano, muitas vezes, ficarem grossos e duros de tinta, quase um couro, e serem vendidos em tabuleiros nas lojas e nas feiras.
O "clima" em torno desses tabuleiros é de indisfarçável competição entre os interessados, pela sorte de se encontrar um retalho "melhorzinho", que ainda dê uma roupa nova, relativamente decente. Isso se repete em qualquer cidade grande do Brasil: em Madureira, no Rio de Janeiro, na 25 de Março em São Paulo, por exemplo.
Uma vez identificado o meu único interesse pelos "piorzinhos", acabo contando com a colaboração divertida das minhas companheiras de tabuleiro. É muito raro um homem comprando pano… e os poucos, encabulados, vão logo explicando que é presente prá mãe ou prá namorada. Invariavelmente questionado quanto à minha estranha preferência, acabei encontrando na hipótese de fantasias de carnaval a explicação mais simples e plausível.
Fico com a impressão de que a "carne-seca"veste a miséria que se veste.
Trabalhar impressões serigráficas sobre "carne-seca" passou a ser um treino do improviso, exigindo movimentos e decisões rápidas e atentas, na manipulação das matrizes, tintas, cores técnicas de impressão. Uma estranha dança de preparações e limpezas, onde através de lances e relances as imagens vão se adequando aos fundos pré-existentes.
Na verdade, cada impressão no pano é somente um instante entre todos os movimentos e operações necessárias.
A água para as tintas e para as assíduas lavagens das matrizes, acaba por se tornar uma companhia constante nos pés e nas mãos e pela roupa toda, sempre úmida.
O sol e o vento se combinam na secagem de cada fase de impressões, muitas vezes substituído por chuvas que ameaçam dissolver até a alma.
Aos poucos fui me familiarizando com a ação de imprimir, manipular as telas, tintas, cores e rodos; lavar estender o pano prá secar, segurando o vento com pedras nas pontas, sei lá; um conjunto infinito de ações, movimentos, momentos, jeitos de ver e usar especificamente cada um dos objetos em questão, coordenado essa dança sozinho, sem mordomia nem interferências.
As bandeiras me libertam do plano fixo da "pintura", conservam sua transparência real e mantém os movimentos livres do pano ao vento ou nas mãos.
Ao mesmo tempo teatrais e arquitetônicas, lembram os estádios lotados e o carnaval, e o jeito antigo de fazer separações e "cortinas: nas casas do sertão .
re-versões
re-invenções
re-lembranças das festas da Praça General Osório de Ipanema,
quando, nos anos 60, Flávio Motta era o "porta-estandarte"
dos artistas plásticos sonadores e suas bandeiras maravilhosas
Flávio Império
Olinda, 1979